Simplicíssimo

Aurora (XXIV)

XXIV

– De nenhuma outra sala te lembrarás melhor.

Um ar de felicidade substituiu de meus traços a aparência de aflitiva apreensão; e atribui aquela contemplação à admiração da utilidade urbana. Tudo parecia merecer atenção e parei em silêncio diante da magnificência das construções de tijolos nus que se erguiam aos céus, todas bem colocadas umas ao lado das outras restando poucas vielas e esquinas estreitas entre prédios, torreões, oficinas e estábulos.
“- Mas que confusão!” – exclamei diante da variedade de novidades.
“- Vamos atrás de alguns alimentos. Precisamos renovar nossas provisões” – disse minha curandeira. Ao chegarmos até uma das esquinas onde um balcão erguia-se junto a uma das vielas, uma pequena multidão se precipitava sobre um homem pingue que bradava pela calma de seus consumidores. Alguns legumes, grãos de bico, farinha, carnes e peles de ovelhas, figos secos e alfarrobas ainda restavam, pendurados junto à cobertura de palha do que parecia uma pequena tenda e nos era simplesmente impossível uma aproximação conjunta no meio daquela gritaria.
“- Não te afastes. Vou até lá” – me disse a mulher enquanto o galgo farejava curioso ao redor dos cavalos amarrados a nossa esquerda.
“- Não me afastarei… muito!” – gritei-lhe, especulando os mais diversos caminhos que se abriam por todos os lados.
Caminhei como que invisível, e por muito pouco não fui de encontro com uma caravana de cavalos que rumava em direção a uma suntuosa igreja. Já caíra a noite e fazia mais frio do que antes.

Protegi-me como pude da noite e cheguei a uma pequena praça de onde, intuí, deviam desembocar ao mínimo três ruas, simetricamente, mas apenas duas esquinas já estavam construídas, de modo que a terceira rua se perdia num pequeno descampado onde discutiam dois guardas.

Aproximei-me deles com cuidado para permanecer em minha invisibilidade e percebi que ali as casas eram diferentes, mais baixas e mais nobres, de um andar somente com os tetos de tijolos, a despeito das demais que possuíam as coberturas de restolhos.
Amoladores, ferreiros, vendedores de peles de coelhos e raposas, gritando que o inverno chegara e que nada mais poderia acudir-nos senão seus casacos, meretrizes, mercadores, casas de farinha e pão… tudo e todos se amontoavam sobre uma pequena praça mal iluminada por uma grande fogueira onde dançavam grandes chamas alaranjadas e que serviam também aos amoladores para atribuírem seus formatos as suas facas, naquele mesmo momento em que as vendiam. Mais perto, percebi que aqueles dois guardas, na verdade, negociavam um de seus cavalos, e tamanha foi minha perspicácia que passei pelo caminho sem ser visto, caminhando agachado junto às sombras dos muros, do outro lado da viela. Meu casaco puído transformara-se numa verdadeira túnica que servira para ocultar-me até as pernas e dessa maneira, incógnito, adentrei a construção que aqueles dois tão inescrupulosamente resguardavam.
Cheguei a duas paredes que se abriam em sinuosa convergência de portas de madeira azul e batentes dourados, todas fechadas, à exceção de uma única entreaberta, à direita de um corredor mal iluminado que parecia levar a um antiquário veronês. Vi ali, representadas às paredes e pintadas com grande expressão artística e em diferentes cores todas cenas que hoje sei constituírem o livro do Apocalipse.

Caminhei em silêncio apreensivo até a porta aberta. Na outra extremidade da sala, perto da única janela por onde a luz penetrava, vi um espelho móvel de acaju. Um homem com um vestuário violeta e uma sobrepeliz de renda, mas de cabeça descoberta, estava parado a três passos do espelho. Este móvel parecia estranho colocado naquele lugar e certamente havia sido trazido de outro país, a se julgar pelas inscrições árabes do seu entorno de verniz. O homem, com ar irritado, dava bênçãos para o lado do espelho, repetidamente e de maneira muito devagar, mas sem intervalos e de um modo cerimonioso. Inexplicavelmente, percebi algo de extravagante e incomum em sua conduta refinada, e interessei-me de uma maneira profética por ele, pois presumi que conseguiria ali alguma informação sobre a localização do cemitério da cidade.

Avancei a lentos passos sobre a madeira fria e a opulência da sobrepeliz ornada de renda me fez estacar involuntariamente, mas estava já tão próximo que, pelo reflexo do espelho a sua frente, o homem me avistou quando abriu rapidamente os olhos até então cerrados com força, e se voltou a mim abandonando seu ar erudito, manuseando lentamente a cruz que trazia sobre o peito. De maneira decorosa ante minha expressão apressada, me proferiu um de seus gestos de benção, agora com um fino sorriso. Possuía uma aparência de esperança, ou de um sentimento análogo, e estava apreensivo também. Certamente sua inquietação em muito se distinguia da minha, pois resignei-me em nada mais que, senão, no medo e na insegurança.
Já aquele velho erudito excitava-se, a meu olhar incauto, por algum capricho ou excitação imponderada, o que tornava a sua aflição ainda mais deliberada e caracterizada que a minha própria.
Aquela imensa sala gótica era extremamente escura e toda guarnecida de carvalhos pretos e com exceção da única fonte de luz natural, todas as outras janelas haviam sido fechadas com tijolos, o que dava àquele singular ambiente um estranho contraste entre a grosseria dos tijolos sujos e mal colocados com a magnificência do forro de madeira, que embora de aspecto lúgubre e triste, era de grande beleza melancólica.
“- Nada parece conseguir dissimular a grosseria deste pobre trabalho de pedreiro”.– disse o padre (sim, aquelas vestes, a cruz e as bênçãos eram de um homem religioso e a se julgar pelos poucos móveis colocados estrategicamente nos cantos da sala onde jaziam cálices de diversos tamanhos, instrumentos estranhos de couro, ferro e alguns outros pontiagudos como lanças de cavaleiros, me denunciaram, fonte de meu mais súbito espanto e medo, que aquela era uma das temerárias salas construídas para expiação de pecados, uma das salas da inquisição), se referindo aos tijolos que cegavam as janelas.

Vendo meu silêncio aturdido, ele abriu um sorriso sincero enquanto se aproximava ajeitando a longa barba com dedos repletos de anéis dourados; nos pulsos, correntes de pequenos rubis e vi, a sua aproximação, que o crucifixo que trazia no peito era centrado por um diamante muito bem lapidado.

Naquele momento várias visões se amontoavam sobre minhas retinas, e eu tentava inutilmente compreendê-las e conceder-lhes algum sentido. Agora percebo que aquelas mesmas imagens, a das cadeiras pespontadas de finas agulhas reluzentes até mesmo no escuro, a do arcebispo a minha frente, ou padre ou secretário de alguma ordem religiosa e todos outros instrumentos de tortura personificavam as teorias do monge que conheci na peregrinação de Vicenzo Locci, a caminho de Trieste. Aquela ostentação de opressão e de riquezas do corpo da igreja de Cristo era, verdadeiramente, a miséria geradora de tantas mazelas políticas. Da humilde pobreza que o próprio Salvador pregara enquanto homem terrestre nada restara, os excluídos (como leprosos e pobres sem cultura como eu próprio, digo impudico) eram ainda mais excluídos de todo e qualquer direito; e a igreja, a despeito de seu fundador, tornara-se opulenta, perseguidora, fonte de controladores infortúnios para aqueles a quem, exatamente, deveria proteger. Ali estava, caminhando e sorrindo a minha frente, numa sala escura de torturas, a própria imagem do que segregara a santa madre instituição e seu braço secular: jóias e pedras preciosas contrastando com os votos de Jesus em abster-se do material para servir os pobres. Se tomados separadamente, os argumentos que nos serviriam de base para qualquer explanação justificativa para tamanho desvio eclesial nos levaria a uma extenuante e sem fim discussão sobre como as Sagradas Escrituras poderiam ser compreendidas, mas uma vez edificada sobre intenções humanas, a igreja poderia ser equiparada a uma oficina de artesãos ou até mesmo (e salve-me Deus de tamanha blasfêmia pela verdade nela filtrada!) a uma casa de meretrizes, que comandadas por espíritos humanos, estariam repletas de intenções humanas e cravejadas de erros irreparavelmente satânicos.
“- Mas o que um pequeno como és está a procurar aqui? És filho de um dos guardas?” – ele me perguntou arqueando os joelhos em minha direção, me observando de perto e com alguma curiosidade.
“- Estou perdido” – consegui lhe dizer.

“- Ora, mas que lugar mais incólume para se perder, não…” – ele respondeu. “– Já não existem mais guardas como antes. Quem poderá se responsabilizar por isso, uma criança perdida por aqui!” – pareceu dizer de si para si, pensando através de palavras ditas em alta voz, embora não as dirigisse a mim.

“- És um padre?” – lhe perguntei enquanto ele andava com as mãos cruzadas às costas, olhando agora meu reflexo no espelho com uma expressão pensativa.
“- Achas que minha túnica está bem colocada?” – me disse em tom apreensivo, tentando agora enxergar suas vestes que se estendiam até o chão; e continuou: “- Não quero parecer um tolo, e um homem mal vestido a nada mais se assemelha… hoje me torno um inquisitor e talvez ainda não saibas, pequeno, mas as primeiras, senão a primeira impressão é que nos marca aos olhos alheios”
Percebendo meu silêncio, ele continuava a divagar, como se encontrasse finalmente alguém para despejar suas inquietudes acerca de seu novo ofício:
“- Não sei por quê me inquieto tanto… Minha hora certamente chegou. Tudo acontece a seu tempo, nem mesmo o inferno se abre numa hora que já não seja conhecida por Nosso Senhor. Nem para os demônios!”

“- Jesus, ajudai-me!” – pensei, sem saber o que dizer; e no mesmo momento daquela minha prece desesperada, o velho disse, senão e para meu maior espanto, a mesma frase:

“- Jesus, ajudai-me… se o inferno não se abre a qualquer hora, como poderei ameaçar os perseguidos deste meu novo santo ofício senão com um inferno imediato após a morte? Terei estudado mal minhas novas atribuições? Oh Jesus, ajudai-me…” – foi então que percebi que a severidade de seus modos era, verdadeiramente, apreensão. Conduziria a poucos minutos sua primeira missão inquisitiva e pensei que, senão Deus, certamente o Diabo estaria também presente para julgar-lhe as condutas.
“- Procuro o cemitério.” – despejei, enfim, aquela frase sem qualquer filtro da razão, pois me encontrava num estado do mais completo estupor da mente.
Ele me olhou de soslaio pelo espelho, ajeitando ainda as vestes à máxima postura dos tecidos.
“- Cemitério?”
“- Quero orar pela minha mãe, que Deus a tenha”.– ele se compadeceu àquela minha nova mentira, ajeitou a expressão e disse:
“- Siga até o torreão de nossa Santa Igreja. O verás assim que sair deste prédio… o cemitério está ao fim do barranco atrás do salão eclesial”.– ele terminou, ainda ajeitando as vestes pelo espelho; e consegui aprumar minha consciência com aquela nova e louvável informação. Já sabia, então, onde se localizava o cemitério!
Ouvi passos e murmúrios pelos corredores e apressei-me em espiar: um grupo de frades se aproximava num salmodiar inteligível, conversavam provavelmente em latim e traziam incensos e outros objetos como ramos de oliveiras de uma bacia repleta do que presumi ser água benta.

“- A hora se aproxima…” – disse o velho religioso esfregando as mãos, apreensivo ao também perceber aquela chegada, e talvez tenham sido tamanhas sua apreensão e nervosismo que sequer se deu conta de minha ausência. Escondi-me atrás de uma grande mesa negra, à sombra, enquanto os frades adentravam a sala, agora já em silêncio. Todos se cumprimentaram à distância, suas mãos escondidas nas largas mangas de suas túnicas monasteriais e logo atrás adentrou a sala, trazido arrastado pelas mãos algemadas por dois homens de grande porte, o infeliz bastardo que sofreria agora com os cânones da igreja. Resignei-me em observar a cena aterradora que se seguiu, e enquanto ainda o benziam com água e orações lidas dos salmos, me esgueirei porta afora e ganhei os caminhos da rua com ar aliviado, ouvindo os gritos atrás de mim. Aqueles gritos… estranhamente, ainda posso ouvi-los.

Rodrigo Monzani

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