Simplicíssimo

Aurora (XXIX)

XXIX

 

 

– Se as cortar, tuas idéias hão de sangrar.

 

 

 

“- Simular é extremamente leviano e digo mesmo, imprudente, mas é algo escrupuloso sem dar mostras disso; entretanto o coração não necessita deixar de ser generoso e mesmo bondoso, porque o espírito é superior. Obviamente existem centelhas da personalidade que não podem ser descuradas, mas após todos estes anos numa instituição que pregou a verdade através de dissimulações da própria verdade, percebo não existirem crimes que não possam ser curados, secreta ou não secretamente, com ou sem penitências, à luz de denúncias ou incapaz de qualquer iniciativa que preze a verdade. Seriam estas as novas razões da mentira: uma produção de fatos, impactantes ou não, mas sempre com o intuito de um prêmio, como fonte de um imperativo para validar interpretações preexistentes na sociedade, ou mesmo num pequeno grupo fechado, como uma ordem religiosa ou monástica.

De fato, não acredito que algum dia um homem tenha olhado para o mundo sem algum tipo de suspeita, ou ainda, algum tipo de profunda temeridade ou desprezo. E quem se torna capaz de dissimular em seus próprios sentimentos do espírito algo dos calafrios e angústias de suas suspeitas, pode transformar a imprudência e leviandade da mentira em confiança, impressões de aparências morais; e conquistar para si uma espécie de ‘espírito livre’, ainda que artificialmente, algo que pode tornar a própria mentira digna de perfeição e fazer do isolamento da verdade uma vantagem. O bom dissimulador não possui o dever de mentir ou de esconder a verdade, mas de isolar a mentira, de modo que a própria natureza humana possa olhar para ela e teme-la como é natural dos homens; e da temeridade nascerá a excentricidade do respeito. Deus é respeitado e temido porque é isolado e querer se aproximar é desobedece-lo, pois não quis se mostrar a nós. Deus não é uma mentira nem verdade, é um refinamento da simulação da realidade, isolado, visto de longe e respeitado exatamente por resignar-se a sua divina solidão, tornou-se conceito de um arbítrio que preza pela submissão, enquanto a realidade passou a esgueirar-se pelo proibido. Passamos a amar o que não vemos e não sabemos se é verdade, então; e aquilo que nos é verdade, torna-se digno de se julgar os valores. Eis a perfeita dissimulação do mundo, fonte tumultuosos desejos, bêbados arrepios e problemáticas enigmáticas: temos o que vemos, e que, portanto, nos deveria ser a única verdade, como algo que nos engana e fonte de repúdio; e o que não vemos nos consola e é fonte de salvação. Tememos a Deus porque, internamente, o dissimulamos para nós mesmos; e assim também deverás agir, se queres ter para si confiança dos homens. Não esconda a verdade, mas isole a mentira. Deixe que os outros a vejam e a temam, pois assim ela se tornará fonte de luz e paz para a própria verdade. Enfim, pequeno, para arrebanhar confianças, mantenha-se como alguém que sabe disso.” – foi o que padre Barton dissera, enquanto me preparava para ser um monge perfeito, embora nem monge e nem perfeito eu fosse.

Dissimular uma personalidade que doravante seria meu próprio domínio para adentrar os muros católicos exigiria-me, mais ainda do que pensei, dizer também a própria verdade, pois a verdade seria-me o ensaio da mentira, a valoração da própria dissimulação, como se a luz fosse a valoração da escuridão, ou Deus, o refinamento do próprio Diabo.
A descoberta de afinidades com aquele velho padre, nossa união pensada por meu pai no projeto de me instalar dentro da sede papal, sua verve que desdramatizava a intriga, faziam dele uma pessoa das menos caracterizadas com aquela época, tão rebuscada e hipocritamente tediosa.
Seus métodos, segundo o próprio, exigentes ao máximo, seriam escolhidos de modo que somente teriam sentido se compreendidos em conjunto, não me causariam nada de brilhante e me apresentariam sempre a mesma situação que seria apresentada caso não estivesse me fazendo passar por um monge, mas variaria nos aspectos e detalhes, na vivacidade, na indignação e “na teatralidade que dissimula as paixões, mas atrai, por sua obscuridade, as feições de confiança.”
Encontrávamos caminhando pelos compartimentos do navio, o mesmo do projeto que tanto me espantou pendurado na parede de Barton. Tínhamos saído muito cedo na manhã seguinte, antes da aurora, e após cruzarmos alguns vales dos quais não me lembro bem, chegamos a uma área pantanosa e retilínea.
Compunha-se de uma espécie de terreno fino e permeável, como as areias do mar e possuía cerca de cinco milhas de comprimento, mas sua largura era ínfima, algumas poucas dezenas de metros ladeados de rochas cobertas de musgos que afloravam com a unidade excessiva, matas de murtas odoríferas, alguns arbustos e, mais distantes, espaçadas palmeiras-anãs quase imperceptíveis através de uma área de canaviais.
A área era inóspita e permeada por finas faixas de água corrente que corriam quase simetricamente para todos os lados; e a atmosfera era carregada por perfumes silvestres que me lembraram a estufa de Goldoni na aldeia corsense.

Passamos por tarântulas, escaravelhos, tulipeiros e lodo antes de avistar uma entrada obscura entre duas rochas, arcada de maneira desigual e muito baixa, de modo que tivemos que nos abaixar para adentrá-la. Enquanto a luz natural ainda nos permitia ver, minha curandeira questionara Barton a respeito das inscrições e dos desenhos no corpo da arcada, versos que retratavam a história universal através de metáforas.


 “- Quatro séculos antes da era Cristã, versos Homéricos eram recitados de cidade em cidade por poetas que atribuíam traços antropomórficos aos Deuses. Tais versos diziam ser a Terra uma esfera eterna, a figura mais perfeita e mais uniforme porque todos os pontos da superfície eqüidistam do centro. O Deus era esferoidal por ser essa forma a melhor, ou menos má, para representar a divindade. Parmênides, um pensador antigo, repetiu a imagem: ‘O Ser é semelhante à massa de uma esfera bem arredondada, cuja força é constante do centro em qualquer direção’. Essa imagem de Deus permaneceu viva por séculos, até que a igreja a reprimiu, perseguindo os poetas que lhe deram a origem. Contudo, estes homens continuam a se reunir, e o faziam em pequenas brechas entre rochas isoladas, como estas. Estes desenhos são obras suas, retratam o pensamento de toda um época… desenhos e versos de poetas perseguidos cujos ideais muito influenciariam as artes de Vicenzo Locci.”
Durante algum tempo não pude enxergar nada, um túnel nos levou até uma outra arcada, mais baixa que a primeira e melhor acabada em tijolos, com a inscrição, em latim, de umas das frases de Vicenzo Locci: “Se cortarmos as idéias, elas sofrem e sangram; são vasculares e vivas.”
A escuridão dava lugar, então, a uma antecâmara iluminada por grandes tochas, dando contornos mundanos a uma série de instrumentos de construção guardados em prateleiras de madeira: serras, pregos, lixas, madeira cortada e troncos inteiros no chão, cordas grossas, metais, vidros e havia uma série de pessoas que pareciam trabalhar arduamente, passando desta câmara a uma outra ainda maior, da qual, àquela distância, não pude nada enxergar.
Avançamos até a segunda câmara e, preso por longas cordas de duplos nós, sobre uma porção de água da qual não se via a origem nem o fim, havia um grande navio. Embora já quase pronto, muitos homens trabalhavam ruidosamente em sua proa, em seu suntuoso mastro, pintando, envernizando, martelando e cortando as arestas daquela embarcação.

Na precisa especificidade daquele momento, lembrei-me da visita ao túmulo de Vicenzo Locci. Vicenzo trabalha anos a fio no cálculo do zênite de uma ilha próxima a Jerusalém localizada no decorrer do centésimo octagésimo meridiano do globo, a ilha que separaria a Terra ao meio na qual, segundo suas interpretações do livro do gênese, Cristo teria sido crucificado, e que o tempo nesta ilha, caso fosse alcançada a velocidade adequada de navegação para alcançá-la, seria o passado. Lembrei-me também da sensação de bizarrice e zombaria com que recebi tais informações pela primeira vez; mas mesmo antes que padre Barton me explicitasse a situação já deduzira que aquelas pessoas eram os seguidores de Vicenzo trabalhando na embarcação que, capaz de velejar mais rapidamente que as demais, chegaria na ilha do Gólgota a tempo de Salvar Cristo da morte. O intento era, realmente, chegar à ilha através dos cálculos de Vicenzo e impedir a crucificação.


 “- Vêem estas águas… desembocam, após dias de viagem sem vento e sem luz por sinuosos túneis subterrâneos no rio Pó, e este, no Golfo de Veneza do Mar Adriático, para então ganhar o Jônico.”
“- Mas como velejar sem vento por dias até se chegar ao Pó?” – perguntei enquanto minha curandeira fumava em silêncio. Padre Barton apontou para uma série de papoulas aninhadas em grandes sacos de vime, muitos deles, das quais, num processo análogo à produção do ópio, seria extraído um pó incolor que, em contato com a água, moveria a embarcação a uma velocidade ainda não determinada com exatidão, mas que seria capaz de mover aqueles esfarrapados tão rapidamente que chegariam à dita ilha na época do martírio.
“- É aqui que encontraremos um refúgio seguro para tua preparação de monge, caríssimo. Nem mesmo os cavaleiros do imperador conhecem este local.”
“- Acreditas nos propósitos destes fanáticos?” – minha curandeira, enfim, falou pela primeira vez ante aquela visão.
“- Se acredito… ora, não foram as peregrinações destes fanáticos que permitiram o pai deste pequeno e vocês mesmos chegarem até aqui sãos e salvos? Estas pessoas são a última esperança que existe contra as regras inquisitoriais. Seus propósitos não me interessam, mas é entre esta gente que vejo a única afronta capaz de derrubar Clemente e libertar seus presos.”
Embora não pudéssemos distinguir o dia da noite dentro da caverna, ampulhetas espalhadas por todos os cantos anunciavam quando era hora de partir para a casa para todos os que ali trabalhavam. Então, no que presumi ser o dia, as pessoas se dedicavam às mais variadas atividades para o término do navio; e à noite, voltavam e deixavam apenas nós, eu, minha curandeira, Barton, o galgo e os cavalos, e dormíamos confortáveis nos compartimentos e cabines já acabadas, após as aulas ministradas pelo padre sobre como deveria se portar um verdadeiro monge.
“- Acreditas que estás caminhando no castelo da proa da embarcação destinada a salvar Cristo da crucificação?” – Barton me perguntou certa vez, irônico, pois certamente não compartilhava da adorável loucura dos seguidores de Locci, embora encontrasse neles a via para a queda do papa Clemente. Minha curandeira se antecipou:
“- Acredito que a loucura destas pessoas faz delas livres de todas as formas que os que se dizem sãos e seguidores da verdade única nunca serão. Não nos importemos sobre sua sanidade, afinal, quão ilógica é a perseguição daqueles que são queimados pela santa madre instituição?” – Barton a olhou de soslaio e seu sorriso a abraçou como quem concordaria que, a uma sociedade de loucuras, somente a loucura poderia prover de salvação.

Aquela descrição de um universo repleto de loucuras que se curavam de acordo com seus próprios paradoxos e desvantagens mútuas aparece-me agora como uma verdadeira alegoria da sabedoria que se cultivava naqueles tempos, a história universal seguindo seu curso, rebaixando as verdades à ficções poéticas e as mentiras, à demônios, um saber enamorado de prosa e verso com o poder de brilhar eloqüente como um mensageiro da perdição universal e que seria, como hoje já o foi, continuamente substituído pela eloqüência de outros saberes que avançaram com os anos, a lentos passos, na conquista de alguma verdade, criando múltiplas verdades, temerária e prudentes ao mesmo tempo. Verdades que prometiam em termos de uma filosofia natural, consumindo os olhos e corações de seus seguidores, ocultos milagres.

Rodrigo Monzani

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