Simplicíssimo

Aurora (XXV)

XXV

 

 – Faças isto em tua própria memória

 

Minha curandeira ainda se encontrava na confusão que cercava a tenda de alimentos; e me mantive em silêncio quanto ao que vi e ouvi durante o espaço de tempo em que me ausentei. Meu interesse estava agora voltado para o cemitério, e procurei, aturdido em meio a tantas novas imagens, o torreão que me falara o inquisidor. Localizar a lápide que realizara meu pai era agora um desejo de meu espírito, um desejo que não mais dependia de minha vontade, e que desta forma, não me trazia qualquer tipo de satisfação ou alento até que me colocasse a sua mercê. Apressei-me, então, em localizar nossos cavalos e o galgo; e resignei-me em esperar a volta da mulher, aguardando com olhos apreensivos e tentando em vão pensar em nada.

Observei que nas partes mais baixas da cidade também se proliferava o comércio e quando minha curandeira me avistou de longe, retornou e tivemos que passar algum tempo nos deslocando entre a multidão para encontrar a igreja.

“- Mas como sabes que o cemitério fica atrás do salão eclesial?”.

“- Ora, enquanto negociava nossos alimentos, tratei de me informar. Ao que me consta, a igreja é centrada pelo torreão. Vês, somente pode ser aquele”.– respondi-lhe, apontando a enorme construção no meio da desordem.

“- Como podem atribuir a uma cidade qualquer organização através das leis?” – comentei, pois me era extremamente difícil mover sequer os braços sem esbarrar numa outra pessoa.

“- Mas, meu caro… é exatamente da desordem que nasce a necessidade das leis”.– disse-me ela, e continuou: “- Até mesmo na desordem há algo de divino, não… se a perfeição existe porque faz parte do santo desígnio, também nas desconstruções, desordens, anarquias e nas feições macabras dos monstros revela-se, soturna, a potência do que nos criou”.

“- Do que ou de quem nos criou? Mas isso não te faz pensar que coisas tão distintas talvez possam ser criadas por distintos criadores, ou forças, ou deuses, como queiras chamá-los?” – conversávamos a caminho do torreão, e na verdade gritávamos um com o outro, tamanha a gritaria que nos envolvia.

“- Não caríssimo, pobre é esta sua constatação… é exatamente nas diferentes feições do mundo que se deve reconhecer a pálida luz da sapiência divina. Assim existem por meio do mesmo divino desígnio as mentiras dos infiéis, as cabalas, os bruxos, as fábulas, as heréticas poesias dos poetas perseguidos, os livros proibidos e os inimigos da verdade. Veja, talvez Deus tenha confiado aos homens esta santa missão: reconhecer aquilo que lhe pode trazer a salvação em meio a tanta imundície.”

“- Ele nos põe, então, à prova diante de suas próprias armadilhas? Mas como então reconhecer Nele algum altruísmo da bondade, se somos salvos por nossos próprios méritos à luz do livre arbítrio que possamos exercer? Ele não nos deveria perdoar mesmo quando nos desviamos? Por que, então, nos colocar este abismo de desorganização que nos oferece tantos meios para pecar?” – perguntei-lhe, me ocupando em ajudar a carregar também em meu cavalo as nossas novas provisões de alimentos.

“- É exatamente nosso livre arbítrio, como citastes, que faz com que o Criador deva nos pôr à prova, caríssimo. Veja: antes, no começo, o governo das coisas do mundo, a produção de cultura e tradição localizava-se no oriente e devido ao homem, devido a sua livre escolha, tal governo cada vez mais se aproxima do ocidente. A divina providência parece nos alertar quanto a isso. Quanto mais distante do Oriente, terra escolhida pelo Criador para se fazer homem terrestre, maior se torna a desorganização, mais se perde e de mais maneiras, maior ainda se tornam as intenções e os falares vulgares e, pouco a pouco, me parece que este governo do mundo mais se distancia da terra da santa. Talvez, daqui a séculos, o governo se encontre totalmente nas terras ainda desconhecidas do ocidente, e então saberemos que o fim dos tempos estão para chegar.”

“- Então os cursos dos acontecimentos possuem um limite no universo, pois se nos desviarmos de tais cursos, um abismo se abrirá dentro de nosso próprio abismo, e nos levará ao fim dos tempos?”

“- Todo um elenco de acontecimentos pode nos levar ao fim, e até que não acabe definitivamente nossa existência terrena, seremos levados ao ninho da serpente da soberba, da insensatez, da inveja… e então perceberemos a terrestre complexidade deste mundus senescit…”

“- Mas, afinal, temos então infinitas possibilidades de nos perder nas tentações, e, no entanto, limitados caminhos para o acerto.”

A mulher se calou por um instante. Já nos aproximávamos da igreja e quando nos deparamos tão próximos do torreão, tratamos de contorna-lo em busca do cemitério que se localizava atrás da igreja. Uma vez mais, minha curandeira se predispôs a responder-me como se aquela conversa não somente a mim, mas também a ela revelasse verdades novas.

“- Não concluo que, neste mundo, seja mais fácil ou difícil acertar ou errar, pequeno. Sei que ainda não sabes escrever, mas conheces um texto, não? Pois imagine que a história dos homens sobre a Terra seja uma grande obra escrita. O autor, enquanto ainda a escreve, pode relacionar a história a uma infinita série de acontecimentos e idéias, e então o livro pode ter centenas, milhares e centenas de milhares de fins possíveis antes de seu término. O texto, uma vez escrito, cristalizado, limita estas infinitas possibilidades de idéias e passa a representar somente aquela que, segundo as intenções do autor, foi contextualizada. Assim deves pensar para a vida: uma vez contextualizada suas idéias, ou seja, uma vez que se tornam história, a sua história, caríssimo, não poderá mais agir senão conforme o que já é, ou foi. É quando as infinitas possibilidades tomam um curso determinado e nosso livre arbítrio se perde. Percebemos então que quem nos põe à prova para a vida não é nosso próprio Criador, mas ninguém mais que nós mesmos. O mundo, penso ser, não somente todo movido ao acaso, pois seus acasos nos levam a agir com determinismo. E, ao mesmo tempo, não é também todo determinismo, pois, em determinadas situações, quem manda é o acaso. A trágica beleza da vida reside no fato em que os acontecimentos, pré-determinados ou casuais, independem de nossos sentimentos e anseios, ou do que particularmente desejamos. Dependem sim e somente daquilo que, de um jeito ou de outro, se tornou história.”

“- E diante deste determinismo casual, ou casualidade determinada, como queiras, onde está o Criador?”

“- O Criador se omite, e se omite tanto para os bons quanto para os maus. Deus não quis se revelar para nós, caso contrário, nos aparecia agora mesmo. Querer vê-lo é desobedece-lo, por isso não se mostrou a nós claramente, mas através de santos e de igrejas; como esta que temos diante dos olhos.”

Sim, tínhamos chegado, enfim, até a igreja que me indicara o velho inquisidor de meu último encontro. Não entramos, tratamos de descer o barranco que costeava a construção e chegamos até os portões do cemitério. Um mar de lápides se abria como um leque, imóveis, brancas e cinzas, resguardadas pelo silêncio eloqüente das orações que pareciam pairar nos ares daquele local.

“- E agora, lembras da lápide de teu pai?” – mesmo antes dela me fazer aquela pergunta, eu já a aguardava. Apertei os olhos ainda do lado de fora dos enormes portões cujos desenhos de santos, de anjos pareciam entendiar-se ao som do vento.

“- Vejas, tem gente… tenhamos, pois, muito cuidado, afinal, devemos olhar atrás de uma lápide ainda perdida. Vamos vagar por todo o cemitério e isto certamente não é conduta que não mereça algum contestamento daqueles dois guardas. Permaneçamos então, em silêncio, e vamos logo a este trabalho dispendioso.”

Enquanto ela se ocupava em avistar algum dos guardas, me empenhei em observar os túmulos. Fui assaltado por uma excitação anormal naquela empresa, olhando, tateando as inscrições feitas às pedras, e tínhamos que nos apressar, pois a noite avançava e a luz nos era cada vez mais fraca.

A certa hora, avistei um túmulo baixo, simples e adornado por um único pequeno monte de rosas, localizado entre dois outros jazigos maiores. Aproximei-me. Toquei as letras esculpidas com a máxima atenção que minha excitação me possibilitava. Estava escrito:

“ Admirável Anitha ‘Nunny’ de Casale

Esposa do Conde de Monferrato, mãe de Izabella, Sophia e Loretto,

1303 – 1330

Que Deus seja louvado por uma criação de tão doce índole e adorável presença

Fostes um espetáculo de feminilidade e alegria para nossos olhos e corações

Que os céus a tenham, querida Nunny”

 

Acabei de tatear a lápide em segundos, no que explodi, sem conter, incauto que era, os gritos de alegria: “ – É esta!!! Esta é a lápide de meu pai!!! Venha, leia para mim, reconheço as letras, venha logo… é esta!!!”

Esgueirei-me para o outro lado do túmulo, minha companheira logo atrás.

“- Onde estavas?” – perguntei-lhe, refazendo meu tom de voz sussurrante.

“- Amarrava ainda nossos cavalos. Deixei-os com o galgo.”

Quando ia falar de novo, ela me alertou:

“- Não devias ter gritado daquele jeito, agora cala-te que vem alguém.”

Vimos sombras lentas se moverem ao redor do túmulo. O fato da lápide se encontrar entre dois grandes jazigos nos foi de muita sorte, pois encontramos ali um recanto invisível aos olhos alheios. Eram os guardas do cemitério, mas pareciam, pelo pouco que pude observar de suas expressões desenganadas, que caminhavam de maneira sonolenta, sem querer encontrar o que não sabiam que procuravam. Como minha leitura necessitava de que tocasse as letras esculpidas, esperamos que se afastassem para ler a mensagem de meu pai. Minha companheira fazia questão que eu mesmo as lesse, pois sabia que a mensagem estava ali para mim.

Localizei as letras, pequenas, mas muito bem esculpidas à base anterior da lápide, após afastar alguns gravetos colocados estrategicamente, deduzo agora, por meu próprio pai e devido a isso era simplesmente impossível que qualquer outra pessoa a encontrasse ali, a não ser que previamente já conhecesse sua existência.

Lembro-me que, enquanto a tateava, sussurrava aquelas palavras:

“ Caríssimo, filho, confio em ti e sabia que encontraria esta lápide. Verdadeiramente, nem mesmo eu próprio me lembrava desta, e encontrei dificuldade para descobri-la. Imperiais ainda não desconfiam de meu trajeto, então, como previ, sigam para Mântua. Procurem o túmulo de Hermando de Bobbio. Será fácil encontra-lo, acreditem.” E, ao fim da mensagem, ainda aturdido, li: “Este cemitério veronês é especial. Procurem o mausoléu do poeta JeanLuca Allinardi, entrem até a lápide e encontrem entre os seus livros uma caixa de cedro que ali deixei. Sigamos, assim, nossa empresa, caro filho.”

Rodrigo Monzani

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