Simplicíssimo

Aurora (XXVI)

XXVI

 

 

– Fujas agora do curso natural das coisas.

 

Ao afastar dos guardas, começamos a execução das instruções de meu pai. Parte gerada na perturbação e parte devido à noite que avançava como uma cortina correndo céu adentro, a situação fez com que nos comunicássemos através de modos e gestos; e minha curandeira, uma vez mais, dava sinais de seu caráter excessivamente parcimonioso, mas percebi que, quando pega pela palavra, suas frases aumentavam em predileção e, digo mesmo, em impropriedade, talvez pela pertinácia e exclusividade com que agora se interessava por aquela nossa busca. Certamente, sempre a desagradavam as situações com as quais não poderia contar com o que gosto de chamar de “a clareza da circunstância” e aqueles novos mistérios, percebi, a levavam a agir de uma forma que antigos eruditos denominariam de panteística; os novos estudiosos, de evasiva; os homens santos, de esquisita e os agnósticos, de hiperexcêntrica, quando não de diabólica.


 De alguma forma, o leitor mais incauto possa querer crer ou profetizar a nossa rápida ruína, afinal, uma criança e uma mulher em tais condições da alma nada mais poderiam tencionar a não ser a morte por seus próprios vícios, dos quais procedem as deficiências dos agires aqui descritos, mas, quanto a isso é preciso romantizar sobre um certo tipo de ignota sensibilidade salvadora que somente pode vir à luz em cenários quando temos a desgraça a nossa frente. Nesta feita, aqueles que aqui já nos predestinam à fatal tragédia certamente encontrarão dificuldades para a compreensão do colóquio que se seguiu:
“- Caríssimo, tudo o que agora fizeres, faças com a mão esquerda.” – ela me disse com um sussurro lépido, em tom profético.
“- Não posso, a direita é justamente minha melhor articulação e sou débil com a canhota.” – disse, sem tentar compreender a sua reflexão.
“- Não importa, faças o que for, use a mão esquerda!” – e diante de meu silêncio endurecido, ela continuou, sussurrando:

“- Olha, o mundo gira da direita para esquerda. Não deverás, pois, fazer o que deves fazer da direita para esquerda, se queres que as coisas fujam da ordem natural do mundo. Se assim for, seremos pegos, fatalmente. Então faças tudo da esquerda para a direita, e lançarás fora dos nossos agires as propensões dos cursos naturais, e mesmo que visíveis, poderemos escapar impunes, porque estamos, canhotamente, fugindo dos óbvios cursos das coisas do mundo. Assim funciona o lépido jogo dos contrários: o branco mortuário de um fruto assegura vivazes e esperáveis doçuras, enquanto os frutos mais vivazes podem esconder e segregar filtros letais.”


 Crença dos espíritos de outrora, foi assim, movendo-nos sempre da esquerda para a direita, que chegamos, mistério admirável, invisíveis aos guardas, até o mausoléu do poeta JeanLuca Allinardi.
Durante algum tempo o admirei, de fora, chegando com a noite à frente do mausoléu, sua bela fachada modulada de cornijas, frisos, arquitraves e pequenas pilastras, num jogo de tijolos vermelhos, pedra branca e ardósia escura.

Olhei para os pequenos feixes de vidros junto à cobertura e parecia ver entrar e sair por eles todo o corpo de espíritos, imaginando a beleza (já formosa naquele meu imaginário) do interno jardim abstrato que florescia dentro do mausoléu daquele poeta e filósofo; uma  verdadeira corte de fantasmas que celebrava algum festejo instruída pela fineza e por tamanho bom gosto que submeteria até mesmo os caprichos de um monarca incapaz de reconhecer e apreciar a elegância daquelas puras almas.


 

Através de todos os anos que hoje me capturam na solitária velhice de agora, muito ouvi falar sobre os versos de Allinardi, e sobre sua vida. Erudito da corte imperial, como filósofo e professor dos infantes descendentes da nobreza ensinara que nada mais são os cursos mundanos senão a virtude capaz de penetrar nos objetos e criações do Sumo Deus, analisados e entendidos sob dez categorias, que seriam pois, Substância, Quantidade, Qualidade, Relação, Ação, Paixão, Situação, Tempo, Lugar e Hábito. Presidira os estudos e construções de diversas máquinas de tortura, sempre tratando de se esgueirar da autoria de um poema que supostamente escrevera na juventude, um de seus primeiros, no qual exaltava a ínfima capacidade de Deus em reunir de maneira coerente todo o repertório de animais e objetos que criara sob uma tênue camada de beleza e contentamento; poema este certamente fruto de uma das noites regada a seu maldito vício alcoólico. Sabia dizer com audácia pensamentos profundos e exibia boas qualidades na conversação e nas regras do que os inquisidores chamariam de bom gosto. De seu mausoléu extravagante, ainda hoje restam suas aulas encadernadas pela corte, seus livros sobre as “Cousas Humanus” e as “Sciencias Psicapax” e foi ali, entre aqueles objetos esquecidos, que meu pai entendera encontrar o perfeito esconderijo para nos deixar uma caixa. Dentro dela encontramos uma longa carta, um manto monasterial limpo e alvo, uma lança retrátil, um arco e flecha e uma luneta.


 Da carta de meu pai quase nada posso relembrar, perdida, como meus dias, nos escuros recantos do esquecimento. Apenas lembro que versava sobre a importância do traje ali deixado e numa possível invasão à sede papal em Avignon. Os outros objetos serviriam-nos para a proteção através da viagem até Mântua.
Nas terras francesas de Avignon, as questões polítcas eclesiais pareciam mover-se soturnas como a lua atrás do cetim das nuvens. Franciscanos e carmelitas planejavam uma afronta, mas faltava-lhes o conhecimento prático para tanto. Desta forma, conspirava-se zelosamente, e de tantos maquinamentos gananciosos e fugazes, surgira a idéia de uma possível aliança com os práticos eruditos seguidores de Vicenzo Locci.

De fato, o papa Clemente não conseguira absorver as necessidades de uma instituição que durante os séculos segregara-se pelos interesses diversos de todas as suas ordens. A mendicância pregada por uns continuava a aparvalhar os virgíneos seios da mundana ostentação de outros; e a desconfiança tomava conta dos meios santos. Todos pensavam estar num covil de espiões, perturbavam-se com as conversas em grupos fechados antes, durante e após as reuniões e concílios e a cada dia Clemente sentia escoar como o sal entre dedos entorpecidos seus esforços de conciliação, caindo enfermo durante muitos meses, talvez por tamanho desgosto e certeza de sua infrutífera busca.


 Meu pai, certamente a par destas discussões (afinal, peregrinar com os próprios seguidores de Locci durante semanas em nada mais poderia resultar) deixara-nos trajes monasteriais conseguidos com traficantes andarilhos de vilarejo em vilarejo, e nos advertia em sua carta, pelo pouco de seu teor que consigo lembrar, que, hora ou outra, o ataque aconteceria e teríamos que penetrar na própria sede inquisitiva se tencionássemos encontrar Alermano, fato que se tornaria mais brandamente difícil com as vestimentas apropriadas.
A verdade é que, na época, a mesma situação poderia ser dita e compreendida de muitas distintas maneiras misteriosas, e a frivolidade dos vários ditos e poucos feitos daquela conspiração cristalizaram uma situação em que qualquer alocução levava a se falar mais e mais, incitando um jogo que hoje percebo ter sido regradíssimo por interesses e obrigações mundanas, sem remédios dos céus ou consolo repentino, sendo natural que – tendo tomado muitas fantasias o caminho mais espinhoso – muitos monges tenham pensado imediatamente na troca de ordens monásticas ou até mesmo de aliados pelos quais, antes não bem vistos, agora poderiam dar a própria vida.

Reformulavam-se os votos a cada dia, alianças surgiam do nada e outras eram desfeitas do mesmo nada que aquelas outras surgiam, os agires pareciam inibir, impedir, mas ao mesmo tempo encorajar novas regras para o jogo de interesses, ao passo que nem mesmo o santo papa poderia deter uma visão geral do cenário que se pintava no escuro de seus próprios corredores.


 Reflito sobre como os fios do passado voltam a se enredar, pois foi devido àqueles acontecimentos longínquos que meu alter ego maligno fizera-se parte do episódio, jogando com meus assassínios, com minhas futuras ausências premeditadas, atrasos e saídas antecipadas, para, no momento propício, colher o prêmio do discurso multifacetado.
“- E se me fizer passar por um jovem monge, com estas vestes que nos deixara meu pai?” – disse para minha curandeira.
“- Certamente esta foi sua intenção.” – ela respondeu, enquanto já saíamos do cemitério veronês, procurando as trilhas que nos levariam a Mântua.
“- Realmente, com o corte de cabelo adequado, parecerás como um noviço de qualquer abadia.”
“- Então por qual motivo devemos seguir a rota dos cemitérios? Por que não vamos diretamente para Avignon, por em prática meu novo disfarce?” – lhe perguntei, eufórico que estava com as novas idéias que nos pespontavam.
“- A esperança é o sonho dos homens acordados, caríssimo. Vamos primeiro a Mântua para saber o que teu pai nos reserva. Se nos deixou este traje, e certamente não foi fácil consegui-lo mesmo que o tenha feito junto aos traficantes, deve ter em mente um plano para nós. Seguiremos, então, segundo suas determinações.” – ela deferiu. Cavalgamos por mais algum tempo antes de sermos vencidos pelo cansaço. Dormimos sob a luz do fogo, e cheguei a pensar sob os desafios desta nova parte preciosa de nossa busca. Tornar-me um monge noviço para então, hóspede ilustre, penetrar na sede papal. Mas o que afinal nos aguardava no túmulo de Hermando de Bobbio, o que meu pai nos reservara desta vez?

“- Tente dormir, pequeno. Amanhã teremos uma longa viagem.” – ela me disse, reencostada no tronco de uma árvore inerte, me observando com olhos perdidos.


 Pensava que, se minha companheira de tão doce índole não tinha ainda a finura das sínteses enquanto aventurava-se em discursos sobre os cursos do mundo, compensava-se pelas energias das palavras.
A noite era fria e os ventos aumentaram, fazendo as folhas antes inertes balançarem como um mar revolto. Irrompi de repente num soluço, virei a cabeça com dificuldade para o lado da fogueira e tentei um sorriso para a mulher, enquanto meus pensamentos murmuravam:
“- Serei então, um monge. Esperam-me os cardeais e os palacianos de Avignon. Terei a oportunidade de encontrar Clemente, seus guardas, sequer de vê-los à distância? Mas como farei para entrar? Como farei as deferências de acordo com as classes sociais e ordens nas quais me infiltrarei? Terá meu pai pensado nisso também?”
De fato, quando chegamos ao cemitério de Mântua, descobrimos o que ele realmente havia pensado.

Rodrigo Monzani

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