Simplicíssimo

Aurora (XXVII)

XXVII

 

 

– Oh, pobre despedaçado, és a vítima neste teatro?

 

 

A cerca de cinco dias de viagem para o sul, no ar frio de diversos povoados avistamos um gigantesco agrupamento de construções centrado por um templo que erguia-se sobre um platô sem árvores, com seus imensos blocos de pedra cortada e polida brilhando ao sol. Para viajantes de terras baixas como nós, Mântua parecia obra de titãs, uma cidade monumental com sua superfície circundada por pântanos enigmáticos e figuras religiosas em terraços e paredes, destoando da completude natural daquela planície.
A inspiração de seus inovadores urbanísticos era imitar, e mesmo aperfeiçoar, a natureza. Tinham por preocupação básica criar uma nova imagem das sociedades e para tanto, no sagrado dever de aproximação com o Criador, estudaram exaustivamente a anatomia humana, a ciência óptica e as leis da perspectiva para que as construções retratassem a ordem e as proporções do próprio homem, desenvolvendo técnicas que metaforizavam as funções de cada prédio e rua aos órgãos humanos.

 

Os moradores haviam decorado a cidade com idílios mitológicos e cenas de jogos, enxertando novos ramos no tronco originário de sua própria civilização, os construtores adornaram as igrejas com mosaicos cintilantes sobre a história sagrada e cobriam suas paredes com afrescos, propiciando aos nossos olhos incautos verdadeiros tesouros da arte sacra, um retrato de tamanha expressividade artística com seus jogos de luz e sombra de todas cenas das vidas dos santos como se elas tivessem se passado num grande teatro com o palco iluminado pelos seus temas e formas melodramáticos. Verdadeiramente, o mundo de Mântua parecia um grande teatro, tanto nas pinturas como nos projetos exuberantes de suas igrejas e casas. Contudo, já naqueles dias a pintura e a arte que ali se desenvolveram já perdiam sua força e convicção e as velhas fórmulas eram reproduzidas apenas de maneira mecânica. Mais tarde, num movimento de reação, os urbanistas e artistas a serviço dos ricos comerciantes que prosperavam Itália afora começaram a repensar seus objetivos e métodos; e como tais comerciantes encontraram nos tecidos de Florença a fonte maior de seus lucros, foi dentre os florentinos que teve gênese um movimento surpreendentemente produtivo e que vinga até estes dias de minha velhice, um movimento de renascimento e de verdades psicológicas, novas formas convincentes, retratos de emoções e interações humanas.

 

Romantizo sobre a arte da renascença nas cidades daqueles anos, pois, percebo agora, serão os métodos renascentistas que me explicariam as formas artísticas que encontramos nos cemitérios, cenas nas quais as expressões humanas mostravam, ainda que brandamente, suas próprias fragilidades, seus sofrimentos, algo inexistente nos anos precedentes. A falsa calmaria cristã acerca da morte se fora, e as estátuas dos túmulos que visitamos pareciam suplicar vertiginosamente por perdão, perdidas que estavam em meio ao sofrimento de suas próprias imobilidades, recordando os emblemas não desejados de seus passados terrestres de pecadores e presumindo seus fins infernais. Grande parte dos mármores esculpidos possuía feições inundadas de dor e desespero, impressionantes, e a esfericidade clássica dos campanários dos mausoléus retratavam um paraíso inteiro repleto de violência, prodígios, serpentes e lagoas negras; e foi dentre tais visões infernais que encontramos o túmulo de Hermando de Bobbio. Como nos advertira meu pai em sua mensagem anterior, não encontramos dificuldades para avistá-lo no cemitério, uma vez que sua majestosa lápide se erguia em meio a estas diversas marginalias: coelhos com caudas de tubarão pareciam dançar ao redor de uma enorme cabeça de pedra que, de seus sete metros, observava os passantes com olhos carrancudos e ameaçadores dos quais pendiam traços de lágrimas até os contornos do queixo. Acima da obra, a figura era coroada por um ser alado, encurvado em sua pequena estatura e que levava, numa mão, a coroa de flores e espinhos, e na outra, um cajado levemente sinuoso, como se fosse formado por cobras. O encaixe entre as pedras era talhado de bronze, e seu brilho contrastava com o corpo de tão sinistra obra.
Hermando de Bobbio fora um poeta descendente da nobreza da alta Itália, e à porta de seu mausoléu havia seu discurso mortuário, seu último antes de ser levado pela varíola. As letras foram esculpidas à testa da grande cabeça que velava o túmulo, e, a princípio, aquele seus discurso imortalizado na pedra me parecera obra do Maligno. Minha curandeira o leu para mim, e ao seu fim eloqüente não pude encontrar explicações para seu tom de voz afável frente a tamanho despautério grafado nos ornamentos daquela tumba:

 

“Oh, época de incertezas e precariedades humanas! Conhecemos, infelizes que somos, o viver para o nada e a negação da vida? O que é este desperdício de força à procura de ânimo? O que é este estado universal de tormento, falta de ocasião e vergonha que nos leva à insuficiência da compreensão?  Hoje se deseja a virtude como forma de potência e divindade, mas mesmo na mais crua luz das auroras nossos instintos perfilam um mundo sem verdades, sem mentiras, movido a doenças do intelecto destes pobres espíritos que somos. Ideais ascéticos, eis o que nos move! Até mesmo as menos secretas vitórias são involuntárias, corruptíveis e subterrâneas, e a própria ausência de altruísmo de nossas posturas, infinitamente menores que cada nossa alma, nos causa a intranqüilidade e a exigência de um esconderijo. Escondamo-nos, infelizes, a monstruosidade é a nossa própria potência e cada palavra esconde filosofias, máscaras e hostilidades fundamentais, mas não as compreendemos. Espectros nos transportam através das noites, e aos uivos nossas almas dançam, brilho da lua sobre nossas cavernas de modelo, padrão, limitação. Usamos continuamente o futuro, dissecando nossos estigmas não mais desejados do passado, dissimulamos as madrugadas e o poder de suas paisagens, suas trevas compactas, suas muralhas e abismos, rasgando nossos corpos em dias opacos e fugas contra o vale da morte. Teríamos a força do nada, do vazio paralisante? Tudo é vão e este auto-engano consciente é a realidade instrumentalizada que nos permite o abandono do ser, e nos faz retratos mortos numa trágica negação da vida, amoral, impertinente, esquecida. A infinita multiplicidade de valores corresponde à absoluta ineficácia dos imperativos humanos. Nosso desejo é metálico, nossa inocência é domínio, nossas raízes são trêmulas, nossa nudez é total, nossos gritos estão imersos, nossas elegias são frias palavras, nosso conhecimento é silêncio, nossos dias são silêncio, e o silêncio perfura mundos imersos dentro de outros mundos, incertos, suspensos, retilíneos, mas sem medida, vagos, encasulados nos teares do tempo, embebidos em mistérios solitários, insondáveis e invisíveis, onde as transparências, nem mesmo elas, são benignas e nem as confluências do céu são exatas. A contradição é natural de nossa criação, temível abismo invertido; e precipitamo-nos em seus marasmos marrons de fina estampa, vendo o inferno dissonante e as metamorfoses deste império de repulsa e atração. Nada e negação como um dualismo complementar até a epifania do mundo ao avesso, eis o mundo tal qual uma oficina de vitrais, pois aqui toda infelicidade frutifica, toda tragédia é introspectiva, os sonhos, claustrofóbicos, e os desejos, impraticáveis. Nossa lucidez nos profana, e a ignorância é funesta. Neste vazio, seriam as dúvidas prudentes? Toda a coragem nos falta quando nos chega o momento em que não temos nada a temer, de nossos corações desaparece tudo, menos o amor, articulando-se longamente no silêncio, tentando intuir do abandono, salvação. Oh, orgulho de ares irritáveis! Que momento de vergonha, confessei-vos todos, homens dignados não a esmagar e desatrelar, livrar o que nos repele com a força das indagações, mas a afligir à presença da prudência. E a força é extraordinária quando se desvaneceram todos, todos nós, oblíquos como um fantasma branco que se afasta na confidência da tranqüilidade das lágrimas; e estas designadoras de idéias perdidas existem porque a dor não é obstáculo, mas a meta da ruidosa ofensa da qual emana nosso suave isolamento salvador de purificação. As emoções dos infelizes são delicadas no vazio, e até mesmo os animais mortos percebem significar aí o único justo sentimento de nossa dignidade. Seremos humanos quando, sensivelmente, o vazio nos isolar, curando as chagas da realidade. A natureza depreciativa dos infelizes que somos é conseqüência do ordenamento da vida de forma que ela não possa ser pressentida porque temos medo; não há contraponto para este tipo de limitação do desejo comodista, perde-se a necessidade das respostas por demais difíceis de aceitação no momento em que passamos a considerarmos, humanos, o nada e, digamos impudicos, pobres despedaçados e vazios que somos, somente o nada liberta! E que não nos façam reagir até que o poder que se aninha nas desconstruções que nos norteiam e nas serpentes da soberba, da inveja e da agressão não seja apenas mero desperdício de força, nesta construção dos casulos do silêncio.”

 

O texto terminava ornado por aves de grande porte que traziam às garras formas de corações humanos.
“- Vamos, entremos antes que nos vejam.” – a mulher me disse, puxando meu braço.
“- Hei, quem são e de onde?” – surpreendentemente, um homem de estatura alta e aspecto imponente surgira em nosso caminho.

 

Silêncio.

 

“- O senhor está fazendo-nos esperar.” – minha curandeira finalmente disse, tentando contorná-lo.
“- Vocês não vão entrar.” – ele respondeu friamente. Possuía botas e um casaco negro, foi o que pude ver enquanto um langor assombroso se edificava a minha volta. Por medo, não consegui sequer mexer os olhos, fitando-o como quem vê a própria personificação da desgraça quando ele proferiu:
“- Eu sei que são fugitivos e asseguro que não entrarão neste mausoléu!”

 

Rodrigo Monzani

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