XXVIII
– Nos teus equívocos aprendestes a confiar.
Ao contrário do que no momento presumi, o homem não nos tocou e afastando seu casaco negro, nos dava a impressão de quem manuseava uma arma, embora não a tenhamos visto; e foi o bastante para que nos resignássemos a sua mercê.
“- Não pensem em utilizar a lança ou o arco e flecha que encontraram em sua última parada. Será uma tola decisão.” – nos disse ele, secamente.
Encontrava-me totalmente disperso, como se das características belicosas de meu espírito me restassem apenas os sintomas, e lembro que pensei algo como: “- Caímos vítimas mortais, terá sido nossa empresa tomada por este vale de poeira deste cemitério e será este o nosso fim?”
“- Isto é uma armadilha?” – perguntou nervosamente minha curandeira enquanto o desconhecido nos convidava a caminhar ao seu lado.
“- Ora, minha cara… não aprendeste ainda que as armadilhas do mundo consistem em vos tornar reconhecíveis para vós mesmos? Então por quê o nervosismo? Tens medo de mim ou do que fizeste?” – ele tentou mediar.
“- Afinal, por que te preocupas em nos impedir o caminho? Quem…?” – antes que ela pudesse terminar a sua indagação, ele a interrompeu. Caminhávamos contra um vento leve para a saída do cemitério e percebi que assim como nós, ele também cuidava para não ser visto.
“- Talvez por serem ainda jovens demais não saibam: as armadilhas do mundo têm sempre como fundamento um equívoco, seja de uma pessoa, seja de várias pessoas ou de um lugar, ou tempo, época, circunstância, e devo dizer que, se ainda não vos equivocasse nesta viagem, estais prestes a fazê-lo. Nestes iminentes equívocos residem outros equívocos episódicos, peripécias que certamente os afastarão de seu objetivo, até um fim repleto de desagradáveis agnições. Refiro-me a equívocos como a morte, ou como um assassinato ousado, ou ainda como aqueles equívocos de quantidade, quando pensam que uma pessoa está morta e na verdade é apenas nosso julgamento de sentimentos que não compreendemos nos levando a pensar que alguém ainda vivo está morto.” – enquanto falava percebi que suas palavras suscitavam o entusiasmo característico de um pregador, de um homem da corte, porém era mais apaixonado no gesto, persuasivo na voz, fascinante no sorriso, claro e conseqüente no raciocínio, nos prendendo a atenção durante todo o momento enquanto teve a palavra para explanar-nos que estava ali como um enviado para nos ajudar, e não o contrário.
“- Por que te preocupas com nossos próprios equívocos?” – perguntei-lhe.
“- Porque estou aqui para privá-los destes equívocos. Como achas que sei que carregam um arco e flecha e que são fugitivos? Não quero que vos percam em vossas próprias mentiras, como fazem hoje alguns homens de Deus.”
“- Estais a nos impedir o caminho para nos ajudar?”- ela perguntou. O homem fez um rápido silêncio, se virou por um instante admirando o suntuoso túmulo ao nosso lado e disse:
“- Vejam o mausoléu deste poeta” – e agora ele apontava com a cabeça, mãos cruzadas às costas, para a tumba de Hermando de Bobbio, acrescentando: “- sua poesia mentiu para ele durante toda sua vida, mas a verdade, sendo princípio de realidade, apareceu-lhe somente no momento de sua morte, neste seu último discurso aqui grafado, e o reduziu à morte. Talvez tenha morrido ao perceber que amar esta verdade seria amar a própria morte, e negar sua poesia. Vêem agora porquê me preocupo com vossos equívocos? Se nos prevenirmos dos nossos, poderemos ajudar a eliminar os equívocos de toda uma era. O mundo é rico de significados porque é rico em equívocos que até mesmo os poetas cometem; é forte nos sofrimentos quando é visto incautamente sob a perspectiva de pessoas comuns. Poetas estão morrendo porque somente agora percebem que durante toda sua vida estavam santificando a mentira e estavam também se enganando com uma arte fictícia e supostamente verdadeira, o clero está se equivocando de maneira irremediável…” – sua voz se tornou emocionada, até que a mulher o interrompeu:
“- Se te preocupas conosco, então deixa-nos com nossos equívocos, pois são necessários à vida, visto que a verdade sobre a vida somente acelera a morte.” – minha curandeira já me pegava pela mão, e intentava deixá-lo com suas divagações, mas ela também, assim como eu, se resignou quando o homem continuou.
“- Te enganas ao pensar que equívocos afastam as verdades, e as verdades aceleram a morte. A vontade de enganar é também uma vontade trágica, assim como trágicas são as verdades a respeito da vida. Assim como os equívocos, as verdades se tornam fonte de impulsos capazes de também nos levar ao engano, à morte. É uma contaminação mútua, verdades e mentiras são prosa e poesia, mas somente na morte é que o mundo é real. Por isso o discurso deste poeta, quando já quase morto, se mostrou como o único verdadeiro de toda a sua vida.”
Aquele era um homem singularmente estranho, pensei; e se meu intento era me tornar um mestre da dissimulação e do discurso para adentrar a sede de Avignon como um monge disfarçado, percebi que tinha muito a aprender com ele. Padre Angelo Barton, este era seu nome, discípulo de Vicenzo Locci, havia peregrinado junto com meu pai na caravana que precedeu nossa própria viagem ao túmulo do erudito. Natural de Mântua recebera com bom coração o pedido de meu pai para nos acudir na viagem através dos cemitérios, uma vez que Barton em muito se solidarizava com o intento da libertação dos presos da inquisição, o “equívoco final”, segundo ele.
Afastado de sua posição eclesial ao manifestar interesses e políticas próprias distintas daquelas pregadas por sua já corrompida ordem, seria ele o próprio reflexo do personagem para mim imaginado por meu pai, pois uma vez que conhecia os agires e condutas monásticas, treinaria-me para ser convincente como um monge, tornaria meus pensamentos clandestinos imperceptíveis para os olhos alheios, condenaria meus desejos secretos e inconfessáveis aos recessos de minha própria mente para que jamais pudessem revelar minha verdadeira identidade, abrigando apenas em meu coração minhas reações de amor, ódio, alegria por um pressuposto êxito ou aflição pelo fracasso sem que isto significasse trazer à tona os pensamentos e acontecimentos que os engendraram.
“- Quem de nós gostaria de ter um amigo cujo temperamento é considerado espontâneo, mas que na verdade, discreto, é propenso à mentira, à dissimulação, atuando na vida e na morte como se fosse um personagem de uma peça teatral?” – nos disse, irônico, quando para nosso alívio nos revelou sua identidade, sua missão e o chamamos de amigo da verdade; e continuou:
“- Teremos que nos isolar, somente deste modo conteremos o impulso de persuadir. Os mais eloqüentes e confiáveis são, verdadeiramente, os menos impulsivos e os mais sutis, pois a eloqüência apenas caminha pelos corredores das inteligências propensas à sutileza do discernimento da verdade. E tenhamos sutileza para sair daqui também, pois se nos verem, não teremos como dissimular uma fogueira na qual nós mesmos seremos o espeto!” e escapamos cemitério afora, a caminho da casa do padre.
O céu frio, brandamente enevoado cobrindo com uma garoa fria os topos das árvores tornava a paisagem dos arredores do cemitério um tanto indiferente e remota. Caminhávamos resolutamente, chegamos até nossos cavalos e padre Barton logo se familiarizou com o galgo, acariciando-o pausadamente.
Passamos por vales embranquecidos de neblina, e o topo do templo sobre o platô de árvores do centro da cidade sumiu, obscurecido pela névoa fria. Sem poder ver aquela construção onisciente que dominava a paisagem do centro à periferia de Mântua, encontramos dificuldade para nos localizar, como se até mesmo o padre adentrasse agora em terrenos desconhecidos e estranhos, embora nos dissesse que já havia percorrido aquelas trilhas milhares de vezes nas mais diversas intempéries. Eu olhava para os filetes prateados, irregulares que as gotas de chuva formavam em minha sela e percebi que minha curandeira estava agora calma e relaxada, sabia que meu pai não nos deixaria no caminho um homem no qual não pudéssemos confiar, porém não deixava de estar, ela também, um tanto preocupada. De toda forma, em larga medida minhas lembranças são excêntricas nos detalhes, e neste aspecto, elas representam não apenas a experiência vivida e o que vi, mas também aquilo que, como antes disse, por força do espírito, imagino.
O tempo, as cenas repetidas introduzem na memória detalhes que o evento original não possuía, mas que se tornam indistinguíveis. A curiosidade espantosa com que agora relembro tais fatos, sem o medo original, sem piedade, faz com que os eventos, antes estranhamente abrigados apenas em meu coração, agora se tornem também indeléveis da razão, e não posso afirmar se, naquele momento, o que nos movia era a calma relaxante de encontrar alguém que finalmente se colocaria a nos ajudar, ou a desconfiança, ou a incerteza ou qualquer espécie de superstição ou medo que nos fizesse suspeitar de um mundo que, inesperadamente, se abria benigno e generoso para nós. Talvez Deus precisasse criar novos mundos para se mostrarem benignos a nossa própria satisfação; para que pudessem nos convencer de sua bondade.
Se for verdade que a confiança e a verdadeira sabedoria residem no tempo, então poderíamos confiar em Barton. Era um homem aparentemente muito velho, embora nunca nos tivera revelado sua idade e agia com um desprezo singular e insistência inquestionável, sempre repetindo que o modo mais terrível de qualquer fracasso seria não admiti-lo. “Nada mais degradante na mentira do que julgá-la como verdade”, dizia. Parecia carregar uma alma extremamente pesada, mas sempre estava muito bem posto, seus modos eram provincianos, tanto em elegância quanto em discrição, e elegante e discreta se mostrou também sua casa afastada, instalada à beira de um pequeno lago inerte, muito próxima da saída da cidade. Seguia o modelo das casas mais antigas, feita de tijolos ocos e com janelas baixas. Seu interior era divisado por móveis antigos de muito bom gosto e não faltavam livros guardados nas prateleiras próximas à lareira: Bíblias em diversas línguas, decretais eclesiais antigos e algumas cópias de grande valor dos estudos de Vicenzo Locci, badulaques de santos e de Cristo presos às paredes e um único quadro, encantador e admirável, que mostrava o que me pareceu ser um projeto náutico, uma grande embarcação vista de todas as perspectivas, de seu interior a seu exterior, seus compartimentos e de que materiais seriam tais compartimentos, legendas que previam a velocidade de navegação, quando passageiros poderia suportar, além de seu combustível que, mais tarde, eu descobria como muito incomum para um navio.
“- Gostastes do projeto?” – ele perguntou quando me percebeu admirado frente ao quadro. Respondi com a cabeça, positivamente, aturdido que estava com a abrangência daqueles desenhos tão bem emoldurados e pendurados na parede.
“- Então descansemos, passaremos aqui somente uma noite. Não nos seria seguro permanecer na cidade, os imperiais costumam me visitar após meu afastamento da igreja.”
“- Para onde iremos?” – perguntou minha curandeira, já despejando suas provisões perto da lareira. Padre Barton se aproximou para acendê-la.
“- Tenhamos a calma, minha amiga.”
“- Por que nos ajuda?”
“- Por que não ajudar aqueles que lutam para a libertação daqueles que não deveriam estar presos? Aliás, sou um homem religioso, um dos poucos realmente religiosos, e devo ajudá-los como pede minha própria religião. Amanhã partiremos para um local mais seguro onde poderei seguir os pedidos do pai do pequeno e ensina-lo como se deve portar um verdadeiro monge. Ademais, ele poderá ver a embarcação como ela realmente o é.”
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