Simplicíssimo

Aurora (XXXII)

XXXII

 

– Ai, pobre despedaçado! Encontrarás alguma tarde que não seja a dissimulação de uma manhã?

 

 

Os dias passavam. Iniciando-me na arte do discurso inquestionável e nas teorias da informação, padre Barton demonstrava-se ainda mais exato e rigoroso do que comumente, aplicando provas a cada cinco dias, práticas e escritas, e não desdenhava em dizer que me abandonaria a qualquer sinal meu de desinteresse. A princípio, dava-me poemas clássicos e raros para ler e recitar em voz alta, tencionando melhorar minha dicção, voz e postura; além de controlar o tom de minhas inflexões verbais de acordo com a emoção. Lembro-me de um desses poemas, de um mestre oriental que compunha em muitos estilos, Michizane, que durante sua velhice escreveu versos sobre a morte de seu filho com uma pungência que transcendia tempo e língua:

 

“Como posso suportar tuas irmãs chamarem teu nome em suas orações
E ver tua mãe desperdiçar o que ainda lhe resta de vida em lamentações
Teu arco de amoreira sobre a porta que esconde tua cama nos umbrais
Parecem-me, agora, como sementes que não florescerão jamais
Na parede, vejo teus rabiscos banhados pela luz suave do firmamento
E ouço tua voz, teu riso, como se deles pudesse apagar o sofrimento”

 

Após a recitação dos versos, passamos ao Código Confucionista: “O discurso” – dizia-me Barton, sempre com sua túnica impecável e gestos incontroláveis dentro do silêncio do navio “- é tão importante quanto o caráter de um homem e a poesia de um poeta. A habilidade, a precisão com que as palavras são ditas ou escritas numa carta, ou ordenadas em versos podem ser consideradas o grande caráter de formação, caríssimo, o espelho de sua alma; mais do que um mero meio de expressão. Trata-se, como o sabes agora, de uma verdadeira arte com implicações morais. A reivindicação de se analisar o caráter de um homem somente pode ser posta à prova quando dele ouvimos seu discurso, a postura e a eloqüência de sua voz, além da nobreza de seus próprios sentimentos. Porém, em tua breve incursão em Avignon, além de uma boa formação moral, deverás demonstrar através de seu discurso que estás à altura de qualquer monge noviço que lhe dirija a palavra, assim como deverás saber responder os frades superiores e eclesiásticos que, porventura, lhe notarem a presença, contudo, sem lhes demonstrar tuas reais intenções.”
Em verdade, não estava convencido que meus argumentos seriam capazes de tamanhas proezas, e por diversas tardes, Barton fizera-me calar, sem respostas plausíveis diante de seus silogismos aos quais não pude responder.
“- Não poderei simplesmente ficar calado, como um monge mudo?” – lhe perguntava sempre que fracassava nas aulas.
“- Pode uma quimera que se perde no vazio do silêncio nutrir segundas intenções?” – ele respondia com austera expressão; continuando: “ – como podes se referir ao silêncio, se este não existe?”, mas continha-se em suas digressões, dizendo que aquelas eram objeções filosóficas de alguns ébrios arrogantes e libertinos que se amontoavam como moscas nos salões de Paris; voltando a me questionar sobre minha postura e sobre como transmitiria alguma informação sem ser pego.
“- Ora, mentirei, simularei…”

“- Deves, antes, eliminar opções de informações verdadeiras. Lembra-te: isolar a verdade para que todos, como é da natureza humana, possam olhá-la com desconfiança e passar a respeitar sua idéia contrária. Por meio de sucessivas eliminações, pode-se obter uma informação dentre numerosos eventos ou possibilidades. Caberá, então, a ti mesmo escolher as possibilidades. Por exemplo, para escolher um livro entre oito que estão a sua frente” – e agora ele enfileirava uma pequena pilha de livros numa mesa com toalha de camurça – “- eliminando as metades, as oito possibilidades iniciais ficam reduzidas a quatro numa primeira seleção, e a duas numa segunda, até obter-se a informação final em uma terceira e última operação de escolha. Em outros termos, a informação que passarás adiante possuirá três raciocínios porque, partindo-se das oito possibilidades iniciais, foram feitas três escolhas. Cada uma destas tuas escolhas reduziu as alternativas de significação, até que se chegou à informação desejada e pretendida. Da mesma forma, quando quiseres construir uma frase, uma retórica a qualquer questionamento que te fizerem, escolherás as palavras dentre as várias alternativas que se lhe apresentarem na situação, de acordo com teu próprio vocabulário, e deverás melhorá-lo, até chegar aos termos que melhor correspondem às tuas idéias e despistar qualquer desconfiança alheia.”


 E assim, através das explicações de Barton, defini um conjunto de signos (e de signos de signos) capazes de, uma vez estruturados e bem compreendidos em minha mente, despertar, de uma desconfiança evidente, a simulação da mentira. Não mentiria exatamente, pois desta forma minhas feições morais, aquelas que nem mesmo os mais escrupulosos dos homens podem controlar, não se alterariam para o medo ou para a ânsia da intranqüilidade, fazendo de minhas palavras o único código de verdade e quantidade de informação necessária para camuflar meu intento de encontrar e libertar Alermano.

“- Veja esta maçã” – disse-me o padre, segurando a fruta a frente de seus olhos “- em uma frase com ‘as maças são vermelhas’ a palavra, a informação ‘maçã’ exclui tudo o que não for ‘maçã’ e a informação ‘vermelhas’ exclui todas as outras cores que não são vermelhas. Esta frase contém mais informação que esta outra: ‘as maças têm cor’, ou ‘existe uma cor referente à maçãs’ Conclui-se, então caríssimo, que a exatidão da informação que escolherás passar adiante será inversamente proporcional à quantidade de alternativas do seu significado: quanto maior for a taxa de informação, menor é a quantidade de alternativas. Além disso, ficas atento: quanto mais freqüente for uma tua informação, a quantidade de vezes que utilizá-la em tuas respostas e assertivas, menos ela informará, pois sua ocorrência pode fazer parte de diversas mensagens, havendo portanto diversas alternativas para seu real significado. Ao contrário, quanto mais rara e incomum for uma informação, mais ela informará, pois existirão menos alternativas e contextos para a mesma. E lembra-te: isto vale somente para quando conversares. Já quando estiver sorrindo, tua mudança de fisionomia é que conterá informação, e não tua fala. Quando levares um susto, será teu silêncio e tua imobilidade que conterão a mensagem. As músicas que ouvires, as pinturas que for comentar, tudo conterá um código que se camufla em tuas próprias reações.”


 

“- Estás me dizendo para não reagir a nada?”


 “- Não, mas exatamente o contrário! Reajas muito, e sempre da mesma maneira forçada. Seja redundante, pois quanto maior a redundância, maior a previsibilidade; e uma maior previsibilidade corresponde à informação mínima!”
Com o passar de meus anos, percebi que o discurso distinguia-se de qualquer modelo literário; e é anterior até mesmo à escrita e aos livros. Trouxe-me novas perspectivas ao saber que surgira antes mesmo do alfabeto através de tradições e composições transmitidas e recitadas oralmente com música, dança e em diversos gêneros. Uma arte tão lírica quanto didática, repleta de inflexões que poderia levar da serenidade à intranqüilidade num mesmo momento, uma pérola perfeita tanto no luxo quanto na simplicidade de suas formas; e assim escrevo por comover-me com a maneira como aquela arte, seja por sua vertente religiosa, seja por seu lado popular, ou seja por sua face cortesã, trouxe-me nova humanidade; e daquela nova humanidade, pude, enfim, renascer em entusiasmo, inteligência e caráter. Tornei-me aos poucos um monge. Ainda que superficialmente, meus discursos eram monásticos, desenvolvi novas formas expressivas, representei a realidade dentro de mim para externar de minha malícia apenas a serenidade e a calma inquestionáveis, como se meus modos, minha conduta, trejeitos e posturas fossem a diferença entre o caos de minha angústia invisível com a realidade das circunstâncias. Como um falso monge, eu fui a diferença entre a religião e o profano.
Lembro-me agora de uma obra que apenas conheci nesta minha velhice, embora tenha sido escrita quando ainda era jovem, uma obra que retratava um inferno povoado de demônios que atormentavam os pobres pecadores. Não posso precisar se, àquela altura, poderia ser considerado o demônio ou pobre pecador, mas certamente estava preste a adentrar o inferno.

Como ainda não sabia ler bem, e Barton em muito me ajudou com seus tabuleiros e lousas de letras e frases e orações e versos e sonetos, não poderia me passar por um monge escriba. Possuía, sim, um grande domínio na arte de desenhar, herança dos ensinamentos de meu pai quando ainda esculpíamos as mais belas lápides. Tornei-me, então, um monge rubricador miniaturista, daqueles que realizam pinturas ilustrativas, as iluminuras, dando às margens de um pergaminho de texto santo a mais bela das apresentações com suas formas angelicais artísticas pairando ao redor das letras. Aprendi a copiá-las, e da cópia extraía algum sentido, mas estava longe daqueles nobres eclesiásticos que escreviam suas filosofias santas como arte e que fizeram com que o privilégio dos letrados permanecesse dentre os muros religiosos de mosteiros e de suas monstruosas bibliotecas.


 A crônica que aqui poderia tecer a respeito de minhas descobertas durante as aulas de Barton ofereceria uma série de episódios obscuros, mentiras e simulações da verdade sobre as quais ainda hoje eu mesmo não poderia pronunciar uma palavra última e definitiva, porém me parece interessante retratar como, de uma mesma proposição e objetivo, pode-se lançar nova luz sobre a situação através da mudança do discurso que sobre os mesmos pode-se fazer, e tornar-me uma outra pessoa. Dupla persona num estranho mundo onde nem as peles de minhas mãos eram puras, mas delas nascia um perfume e aroma de justiça, um róseo, venturoso e deliberado desejo de se alcançar a velha felicidade com atitudes a serem profundas como um mundo que tem uma tarde que nada mais é do que uma manhã a se dissimular.
“- O que queres ao pensar mentiras como verdades?” – me perguntou minha curandeira, quando me percebeu sob todos aqueles novos aspectos.
“- Prefiro querer isto, a não querer.”.

O Concílio do Santo Suplício estava há dois dias.

Rodrigo Monzani

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