Simplicíssimo

Aurora (XXXIII)

XXXIII

 

 

– Da batalha, te restará apenas um espelho que não te reflete.

 

 

O plano era tomar parte da procissão que rumava para Avignon antes que as delegações ganhassem os planaltos franceses, assim penetraríamos mais facilmente naqueles grupos que vagarosamente passavam pelas antigas terras que levavam à sede papal. Peregrinavam em caravanas espaças, mas organizadas como vasos comunicantes, nas quais os grupos não muito diferiam em quantidades de cavalos e carruagens, o que nos dificultou a identificação do grupo franciscano. Em meu último dia no navio, lembro-me que, ao sair, percebi que alguns homens ordenavam portentosos espelhos sobre cavaletes sustentados por uma viga transversal, perto da amurada e que se estendiam até o beque frontal. Os espelhos, não muito altos, possuíam cerca de cinco metros de largura e eram retráteis, escorados num bloco de madeira encarregado de suportar e distribuir seus pesos. Acima deles e apoiado por algumas vigas, havia uma peça maciça de carvalho, chamada de peixe do mastro, cujo formato escorava, perto do orifício de vigia dos remos, um trilho de ferro por onde os espelhos deslizariam. Barton, ao perceber nos meus olhos uma curiosidade fortuita pelo aparato, disse-me que seria útil para um monge franciscano conhecer tais portentos, já que, como já antes disse, muitos deles seguiam os preceitos e estudos de Roger Bacon, o religioso racionalista e matemático que muito bem poderia ressuscitar num diálogo entre os de sua ordem em Avignon. Além disso, muitos dos noviços franciscanos com os quais certamente encontraria conheciam os princípios racionais e muito se interessavam por aqueles assuntos, como é comum de infantes imersos na tediosa rotina monástica. Perguntei, então, o que significavam os espelhos de tão grande porte num navio, e onde estariam os escudos náuticos, já que os espelhos se localizavam exatamente no local onde estes se encontrariam numa embarcação comum.

 

“- Embora os escudos tenham lá sua utilidade em batalhas nos mares, pendurados perto das amuradas de proa a popa, tal prática possui um caráter apenas cerimonial. Num navio em movimento constante cruzando os sete mares e movido pelo pó de Vicenzo, os escudos seriam varridos pela água e seriam inúteis em momentos de calmaria. Vicenzo, então, os substituiu por espelhos com os quais antigos eruditos destruíram navios de piratas estrangeiros que cercavam suas margens. Cada espelho absorve e remete os raios de luz que caem, paralelos, sobre outra superfície, e por isso reflete o mundo que se pinta a sua frente. Roger Bacon percebeu que, se o espelho não estiver fixado a um ponto referencial, os raios, diferentemente, não serão refletidos de forma paralela entre si. Foi quando Vicenzo lançou mão de cálculos geométricos e concluiu que, se os espelhos fossem capaz de transcorrer o entorno das amuradas de um navio, de acordo com a posição do Sol em determinado momento, todos os raios refletidos”., antes paralelamente, se concentrariam num único ponto distante, segundo a curvatura e deslize dos espelhos, o que geraria uma concentração de raios solares especificamente num alvo determinado que rapidamente entraria em combustão. Navios inteiros poderiam ser destruídos daquela maneira, experimentos nos quais frondosas árvores, velhas carruagens e espantalhos foram queimados desta forma se mostraram bem sucedidos. Além disso, o navio possui velas costuradas em lã dispostas em ângulos transversais e quadriculados, de modo que estas faixas reforçam os tecidos evitando que o mesmo se alarga ou se encolha com o constante molhar e secar, o que torna, também, o tecido mais resistente às flechas inimigas. No alto destas velas, em seu corpo de tripulantes o navio contra com alguns numerosos arqueiros munidos de lunetas. Como te disse, alguns noviços franciscanos se interessam por tais maravilhas náuticas devido à influência de Roger Bacon em suas formações, por isso se compreenderes bem tais segredos, poderás apresentar a eles, se tiveres alguma imaginação e bom senso, versões racionais sobre a defesa não só de embarcações, mas de muralhas de cidades, de pontes, explicando-lhes o motivo que poderia, algum dia ou noite do passado, ter levado as muralhas de Gomorra caírem melhor que aquelas de Sodoma, ou como a Torre de Babel poderia ter não caído, se alicerçada não em vinte e oito, como reza o Livro dos Números, mas em trinta e três metros, que aliás, é a idade de Cristo.”

 

“- Mas de que maneira, como um religioso, conheces tais segredos das ciências exatas?” – perguntou-lhe minha curandeira, preparando já nossos cavalos para a viagem de encontro com as delegações que rumavam para o Concílio, à saída da caverna.

 

“- Ora, minha cara, não pense que espiritualidade vigorosa da verdadeira santa madre instituição esteja à margem das graças do racionalismo e das estratégias de guerra. Como são muitos os inconvenientes, os propósitos públicos da igreja acabam por camuflar o conhecimento eclesiástico das ciências exatas, mas, como se sabe que de tais ciências pode-se colher inúmeras vantagens, muitas das bibliotecas de abadias e mosteiros abrigam obras que versam sobre tais maravilhas do raciocínio soberano racional.”
“- Pensava que a igreja combatia tais pragmatismos.” – murmurejou minha curandeira enquanto o galgo se agitava entre nossos cavalos.
“- Pragmatismo, racionalismo e misticismo possuem caminhos levianos e labirínticos, apesar da vitalidade de seus propósitos. Aos olhos do povo, a igreja realmente os combate, mas ante à visão assustadora de ter seus eventos milagrosos postos à dúvida racional, a igreja congrega-se num conservadorismo espiritual apenas aparente, combate os racionais como bruxos e feiticeiros e os queima, embora se tão apegada a tais conceitos como o era na época das desavenças de seu papa romano com o patriarca de Constantinopla.”

 

Àquela sua alusão à hipocrisia eclesial, percebi os motivos que levaram Barton a ser afastado de sua ordem. Tornava-se clara a razão das divisões por freqüentes e tumultuadas batalhas entre facções teológicas, cada uma delas declarando-se possuidora da única verdade, considerando heréticos todos os oponentes. Este racionalismo imerso sob à capa de perseguição à magias funcionava como um imã para inimigos prontos para uma guerra, e daí, deduzi, o braço secular católico não sustentaria tamanhas investidas contra seu próprio ventre conservador. Eis a razão do Concílio do Santo Suplício, reunião na qual eu mesmo tomaria parte como um falso monge, talvez o único verdadeiro em minhas intenções.
Barton me dissera ainda que a caixa que deixara meu pai num dos túmulos que visitamos muito seria útil: além do traje monasterial, a luneta, a lança e o arco retrátil conseguidos por ele seriam determinantes para que pudesse localizar os franciscanos a caminho de Avignon e deles poder fazer parte. O último passo foi cortar meus cabelos como o de um noviço, o que foi feito por minha curandeira sob as indicações de Barton.

 

Partimos, eu, ela e o galgo. Barton, resignado que estava entre os seguidores de Vicenzo Locci, apenas nos acenava com uma expressão indecifrável no rosto, um misto de alegria, apreensão, medo e esperança, enquanto nos afastávamos.
O primeiro a ser feito era, antes de tudo, localizar os franciscanos, depois adentrar sua peregrinação e manter-me o mais oculto possível entre eles, até Avignon. Uma vez dentro da sede papal, quando preciso colocaria em prática os ensinamentos de Barton; discursaria para não revelar minha verdadeira intenção ou quem realmente era; conquistaria, se necessário, algumas atenções entre os noviços através dos princípios racionais de Roger Bacon aos quais os franciscanos ainda hoje são tão solidários, para, enfim, encontrar o momento exato para ausentar-me dos grupos do Concílio e esgueirar-me a caminho das masmorras da sede papal.

 

A concatenação de tais objetivos, embora não absurda, nunca me pareceu algo realizável como teorizamos durante tanto tempo de preparação. Não em sua prática integral. Infelizmente, os fatos que se sucederiam realmente estavam longe do esperado; e, dos diversos momentos de incertezas que diante dos meus olhos se abririam, tive que encontrar outros meios, alguns totalmente imprevisíveis, que justificassem meu fim.

Rodrigo Monzani

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