XXXV
– Condenastes a substância indivídua que em vós também existe.
Todos na peregrinação estavam o suficiente confusos e perturbados com o cansaço e os discursos sobre heresias para que alguém me notasse a presença.A noite passou mais rápido e confortável do esperava e pelo que pude apurar entre as conversas, Avignon estava preste a nos despontar no caminho.
Enquanto ainda lidava com minhas escassas provisões para a ceia, um homem absorto, colocando diante dos olhos óculos de lentes grossas se aproximou. Logo percebi ser aquele velho o mestre dos noviços franciscanos, a se julgar pela maneira instrutiva e superior com que se dirigia ao nosso grupo. Na verdade, o grupo de noviços se reduzia, agora, a mim e a um outro infante que carregava à mão direita uma ampulheta de madeira de mínimas dimensões. O velho de óculos lhe dava instruções com os olhos apertados, lhe dizendo que construísse uma forquilha em que alguns vidros bons pudessem ser colocados, diminuindo assim sua falta de visão; e se irritava, pois as lentes que melhor lhe satisfaziam até aquele momento da viagem eram todas azuis, e ele dizia que não gostava de ver o mundo como se estivesse imerso no oceano.
Assim, sem conseguir me ver as feições direito, parte devido a sua miopia, parte devido a minha túnica, ele me falava numa mistura de italiano e latim; e para desviar-lhe as atenções sobre minha identidade, resolvi perguntar-lhe a respeito do monge de ar virtuoso que havia discursado com o abade e nos falado, à hora da ceia, sobre a luxúria do conhecimento.“- Albertino passou por várias experiências antes de nos encontrar, talvez tenha andado entre os hereges de vida profana, mas nossas abadias são verdadeiros universos e não podemos dar conta da origem de todos. Acolhemo-nos, então, em busca da salvação, o passado é digno apenas de penitência, e não nos é motivo de distinções.”
“- Mestre” – lhe disse, ainda sem levantar-lhe os olhos, “- não estou compreendendo o que aconteceu.”
“- A respeito de quê?”
“- Acerca destes grupos heréticos.” – e aqui me lembrei dos ensinamentos de Barton, e de suas lições a respeito do discurso multifacetado “- Estou perdido com o problema de tantas diferenças. Tenho a impressão que a missão de Cristo, assim como a de nosso santo Assis tente demonstrar-nos que todos somos iguais, santos ou hereges; e ao contrário, a igreja parece tentar explicar agora as diferenças, por menos ortodoxas que elas sejam. Reprovamos aquela mulher por acharmos diferentes suas crenças, e aquele monge nos disse que a reprovamos porque, no fundo, suas diferenças são iguais, em sentido, as nossas próprias.”
O velho pousou, por um longo momento, as mãos em minhas costas:
“- Meu bom Aldemaro” – e descobri meu novo nome “- coloquemos as distintas características dos homens sobre a mesa da própria ceia, e as separemos conforme as lições das escolas de Londres e de Paris, como sei que é de vosso apreço. Lembra-te de nossas aulas? Todos os homens têm a mesma forma substancial, ou me engano?”
“- É sim”
“- Então isso significa que há uma identidade entre todos os homens, indubitavelmente. Somos todos capazes de rir, de chorar e de dizer coisas sábias, assim como capazes somos de criar e dizer heresias. Há, porém, diversas intuições que nos movem que também são características e comuns à natureza humana. Porém, se esta natureza humana é o que nos irmana, é também o que nos faz tão diversos, na complexidade de suas operações que presidem quer o amor pela verdade, quer o amor pela mentira, pelo bem ou pelo mal! Quando digo, então, que existem diferenças entre um herege e um cristão não estou a contradizer Cristo, ou o santo Francisco, mas apenas insisto sobre a variedade dos amores, das intuições que são próprias dos homens. E insisto sobre isso porque insistimos em queimar um herege pelas faltas que podem muito bem acometer o mais casto dos cristãos, e vice-versa. E quando condenamos um homem por suas diferenças, condenamos sua substância individua que em nós também existe, mas apenas não se manifestou, e reduzimos ao vácuo do nada a essência de seu existir. Condenamos nos outros o que condenamos em nós mesmos, e assim nos livrarmos destes hereges e nos livrarmos de nossas próprias heresias ocultas, mas existentes em algum recanto obscuro de nossos próprios corações humanos, que por humana definição, possuem intenções pecadoras.”
“- Mestre, entendo menos ainda…”
“- Tenta antes entender como muitos dos movimentos hereges nasceram há mais de duzentos anos, e já estão mortos, e outros são ainda recentes.”
“- Mas quando falamos de heresias, elas são classificadas todas juntas, no mesmo raciocínio.”
“- É verdade, mas desde modo é que a heresia, ao mesmo tempo, é destruída porque condenamos a todas, mas também se difunde porque costumes diferentes não podem ser reformados sobre os mesmos parâmetros. Talvez daí venha tua dúvida. Eu te disse às nossas aulas, o que nos faz morrer é também o que nos faz viver. Alguns movimentos hereges enriquecem-se com os simples que foram estimulados por outros movimentos e que acreditam tratar-se do mesmo movimento de revolta e de esperança; e são destruídos pelos inquisidores que atribuem a uns os erros de outros, e se os líderes de um movimento comentem um crime, esse crime será atribuído a cada simples de cada movimento de heresias. Lembro-me agora de um bom exemplo: durante mais de cem anos, entre os finais do século XI e a metade do XIII, uma terrível seita, minúscula no universo oriental, trouxe temor e, por vezes, pânico à região de terras mais distantes. Tratava-se de uma ordem de lúdicos matadores, assim chamada porque os seus integrantes, antes de praticar os atentados, inalavam um estupefaciente, o Hashishiyun, ou haxixe. Os seguidores da ordem caracterizavam-se pela entregada total à missão que lhes era atribuída por seus superiores e por não demonstrarem medo nenhum perante a morte que fatalmente os aguardava após terem praticado suas ações terroristas. No ano de 1166, na praça central de uma fortaleza no alto dos Montes Elburz, no norte do Irã, o líder destes assassinos, Missan II exultava frente aos companheiros e seguidores que ocupavam todo o espaço a sua frente. Ele os convocara para um importante anúncio. Queria dizer-lhes que, enfim, aproximava-se o dia da Ressurreição, estando muito perto do momento em que, pondo fim àquela época, iniciada há muito tempo atrás por Adão, o Deus oculto finalmente viria liderá-los na renovação de tudo. Dali em diante, assegurou ele, não haveria mais liturgia, pois a religião tornara-se puramente espiritual, sem templos ou culto. Que se preparassem, portanto, para os novos tempos, concentrando-se todos eles dentro da fortaleza, um lugar inexpugnável para os seus inimigos, de onde só sairiam para realizar suas operações de assassinatos seletivos. Quando estes lúdicos foram presos e condenados, não somente o líder Missan, mas todos aqueles que, por coragem ou covardia, se uniram ao movimento, foram mortos.”
“- O que queres me dizer com isso?”- perguntei-lhe.
“- Quero mostrar que os simples não podem escolher sua própria heresia, agarram-se a quem tem voz e prega na terra deles, a quem passa pelo vilarejo ou pela praça. É com isso que seus inimigos jogam. Apresentar aos olhos do povo uma única heresia, que talvez aconselhe ao mesmo tempo a busca pelo prazer carnal e a comunhão dos corpos, é boa arte predicatória porque mostra os hereges num só vínculo de diabólicos desejos que ofendem o senso comum eclesial.”“- Mas acreditas que exista um senso comum eclesial? Por que, então, tantas ordens, não é exatamente sobre isso que vamos discutir no Concílio?”
“- Resposta perspicaz, Aldemaro. Não sei mais. Por que, se consideramos apenas a intuição do indivíduo justa e elemento de sua própria distinção, temos o fato de que causas do mesmo gênero não tenham efeitos do mesmo gênero?
”O velho fez uma pausa, ajeitou os óculos que o outro noviço lhe passara, e continuou sem dar importância às lentes:
“- Como posso descobrir e julgar como verdades ou mentiras a ligação universal que torna ordenadas as coisas, se não posso nem mesmo mover os olhos sem criar uma infinidade de outros novos entes, uma vez que com tal simples movimento mudam todas as relações de posição e perspectivas entre o que vejo e os demais objetos a minha volta, mas que não vejo mais? Repara, estou falando de posições, proposições sobre as coisas que vejo e não vejo mais, e não das coisas em si. A religião tem a ver com a posição e proposição das coisas e dos seres, e tais proposições indicam coisas singulares. Não existe nada acima de Deus, assim como existe um só Deus. Entende, eu devo acreditar que tal proposição funcione, mas para acreditar deveria supor que nela existem leis indubitáveis e universais, contudo, não posso afirma-las, porque o próprio conceito de que Deus seja único e esta seja uma lei universal implica que o próprio Deus seja prisioneiro desta lei, desta ordem para as coisas, enquanto Deus é ente tão absolutamente livre que, se quisesse, e por um só ato de sua vontade, o mundo seria diferente, e então, se assim Ele o desejasse, existiriam várias mundos com vários Deuses, ou as coisas é que nos veriam, e não nós as coisas!”
“- É uma vida difícil, a nossa.” – disse-lhe, supondo que o velho estava mais em dúvida que eu próprio. Chegaríamos a Avignon em três dias.
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