Simplicíssimo

O Marquês (XII)

 

“- Nós, os novos, os sem-nome, os difíceis de entender, nós, os nascidos cedo de um futuro ainda indemonstrado – nós precisamos, para um novo fim, também de um novo meio, e de uma nova saúde.”
Nietzsche, in: ‘A Gaia da Ciência’

Numa manhã fria na rua De La Morteille, a Cidade dos Ventos começava a despertar sob um pálido sol de outono. Naquela aurora marrom de folhas secas e galhos retorcidos, Greenwood, após decifrar mentalmente o método racional do assassino de sua filha, acreditava em encontrá-lo, e naturalmente, assassiná-lo. O breve consolo que encontrara em seus pensamentos algumas noites atrás e a total ineficácia das buscas locais pelo suspeito fizeram com que Greenwood acordasse para a possibilidade irresponsável de capturar, torturar e acabar com o assassino com as próprias mãos. Obviamente, trazia tais valores dentro de si e apenas para si, e, externamente, trazia consigo para tal empresa seu único filho homem, Verlag.

Assim como Granier, o filho de Greenwood era jovem e com o passar da juventude tornara-se cada vez mais fechado. Possuía grandes dificuldades com abstração, sobretudo com conceitos de ética e moral; aprendeu a soletrar, assim como Will, tardiamente e sabia escrever seu nome. Fora isso, nada. Por menor que fosse, não se interessava por frases novas e apenas submetia-se ao contato com outras pessoas quando as circunstâncias o tornasse absolutamente necessário. Assim como Willian Granier, Verlag Greenwood era um caráter das trevas; e talvez por entender tão bem o próprio filho, Allan Greenwood tenha lançado tamanha luz sobre os terríveis acontecimentos desenvolvidos por Granier. Porém, Verlag não era gênio. Os professores consideravam-o débil mental; mas seu pai observou que ele possuía determinadas capacidades e peculiaridades muito incomuns, até mesmo estranhas: Verlag parecia-lhe completamente alheio ao medo infantil do silêncio, da falta de luz e da noite. Allan lembrava com frequência das frias noites que mandava Verlag, apenas para lhe testar as habilidades, descer ao porão para buscar-lhe algum objeto, ou ir até o celeiro, sozinho na noite mais escura do ano como breu para ver os cavalos, e o menino jamais levava consigo um lume e sem nenhum equívoco de movimento, sem nunca voltar ou olhar para os lados, Verlag sempre fazia o que lhe era designado com enorme sucesso, sem derrubar ou quebrar coisa alguma, sem movimentos errados ou vacilantes. Ainda era notável como Verlag parecia, em certas ocasiões, ver através das paredes. Obviamente o garoto não via literalmente através dos tijolos, mas sua capacidade perceptiva de tempo e espaço, seu tino dedutivo para constatar algo que lhe estivesse longe dos olhos eram impressionantes, e Verlag sempre descobria o que aos outros ainda era incógnito. Quando mais crescido, arriscava-se a deduzir eventos futuros através de detalhes mínimos, muitas vezes incoerentes sobre os quais sua empedernida mente lançava uma luz salvadora e somente ainda não havia utilizado tais habilidades para a captura do assassino de Valerye devido a sua pouca idade. Antes que seu pai lhe incutisse tal empresa, Verlag simplesmente não havia atinado para tal rumo.
Verlag possuía um silêncio pavoroso, inconscientemente considerava mesmo que a riqueza do mundo e a pobreza da linguagem provocava desacertos grotescos, e mantinha-se calado. Especial ou não, Allan estava convencido que o filho possuía uma espécie de segunda visão, e talvez por isso a presença de Verlag lhe fosse, de certo modo, inquietante. Para algumas pessoas, era praticamente indefectível a presença de uma criança tão intrigante, sobre a qual giravam tantos e tão grandes mistérios que estes apenas poderiam ser motivados por virtudes.
Perto do rio, Allan conhecia o dono de uma fazenda de porcos chamado Bridel, que possuía fama em empregar jovens órfãos nos trabalhos com os suínos, não aprendizes, mas infelizes desacreditados sobre os quais ninguém perguntava. Havia na fazenda certas ocupações que eram tão perigosas a homens fortes que não valia a pena designar operários pagos para realizá-las, restando aos órfãos, que rendiam a Bridel uma pequena pensão mensal do governo, a sua realização: abate e sangramento de porcos selvagens, o corte e limpeza de suas carnes e a retirada do couro desses animais em decomposição eram alguns desses trabalhos.
Allan Greenwood não sentiu arrependimento ao propor a Bridel que este lhe selecionasse dois dos jovens mais fortes e espertos, se possível inteligentes, para que somadas às capacidades dedutivas de Verlag, pudessem encontrar Granier. Greenwood sabia que o assassino tratava-se de um jovem, as diminutas marcas das mãos do estrangulador, o reduzido espaço no celeiro pelo qual escapou, a dificuldade da polícia em encontrar um suspeito… além disso, crianças órfãs vagam aos montes pelas ruas da Cidade dos Ventos no pós-guerra.
Bridel apenas pensou que cumprira sua obrigação legal junto ao governo. Dera educação, abrigo e emprego àquelas crianças enquanto pôde, e diante da proposta de Allan percebeu que não sentiria falta da pequena pensão do Estado que recebia por cabeça orfã em sua fazenda. Se os escolhidos para a empresa dos Greenwood sobrevivessem, tudo bem; se morressem, também estava tudo bem; e embora, neste ponto, não seja mais importante a presença de Bridel para a história de Granier, merece nota apenas o final de seus dias.
Bridel, embora já morto por dentro, para a vida externa ainda durou muitos anos, após dez anos daquele encontro com Allan e seu filho, cessou suas atividades na fazenda e sentou-se em sua cadeira de madeira esperando a morte. Que não veio. Em vez dela, veio, porém algo inesperado não só a Cidade dos Ventos, mas a todos naquele país. Uma revolução, o que significa uma mudança no modo de pensar, de agir, de governar os modos sociais e políticos daquelas terras. A bem da verdade, a princípio a revolução não teve grandes consequências para o velho Bridel, então com quase setenta anos, mas quando o velho foi obrigado a voltar a seu país, uma vez que suas terras foram confiscadas pelo governo para saldar as dívidas do próprio Bridel, o velho fazendeiro se viu desapropriado e a obra de sua vida foi leiloada a um produtor de trigo local. Bridel recebeu algum dinheiro, mas não em moeda forte, e com o passar de mais alguns anos, quando já octagenário, se viu instalado em sua terra natal, num quarto parcamente mobiliado ao lado de um curtume, esse foi seu fim material.
Seu fim terrestre se deu dois anos depois, quando foi internado no hospital público, sujo e mal cheiroso num leito coletivo que dividia com cinco outros velhos que lhe encostavam no corpo, incapazes de satisfazer suas necessidades sem ajuda, abatido e sem fala devido a um tumor na língua.
Bridel não resistiu e, tardiamente, enfim, o anjo cego da expiação o levou para uma cova coletiva, jogado numa noite de chuva junto a outros cinquenta cadáveres e enterrados sobre terra preta e cal virgem. Naquela noite, anos atrás com Allan Greenwood, Bridel mal podia prever o que lhe aconteceria, talvez por isso se sentisse tão a vontade para indicar a Allan dois de seus jovens para juntarem-se a Verlag na caça ao assassino. Isso aconteceu há muito tempo, mas pode ser descrito com as mesmas palavras daquela época, pois os sentimentos motivados são os mesmos.
Os jovens indicados eram modelos de submissão, despretensão e vontade de trabalhar. Obedeciam literalmente e aceitavam com gosto qualquer comida. Na fazenda, dormiam ao lado de peles e carnes cruas salgadas e penduradas para secar, no chão batido após trabalharem por quatorze, quinze horas sob o sol entre pêlos de porcos e carnes maceradas num fedor bestial repleto de vapores corrosivos.
Ao primeiro olhar que lançaram sobre o senhor Allan Bradford Greenwood, os jovens souberam que aquele homem era capaz de surrá-los até a morte à menor desobediência. Ou melhor, mandaria um de seus capangas surrá-los, a julgar pelas vestes pomposas dele e de seus filho. Eles perceberam que suas vidas valiam tanto quanto o trabalho para o qual foram selecionados para executar.

Rodrigo Monzani

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