Simplicíssimo

O Marquês (IX)

"Construimos um locus em que podemos ser
Ao admitirmos corpos, linhas, terras, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo
Sem esses artigos de fé ninguém toleraria agora viver.
Mas com isso, ainda não são nada de demonstrado.
A vida não é argumento, e entre suas condições poderia estar o erro."

Nietzsche, A Gaia da Ciência.

Espetáculos não são novos, mas raro é o de uma sepultura fresca como ponto de encontro para novos escândalos. No seio de seu horror onde o ar é rarefeito, o espírito de Granier pôde experimentar uma vaga angústia e uma alegria pronta para as lágrimas que nascem longe do coração, esse bem estar que habita lugares imensos e singulares, ao vislumbrar e marcar como que a ferro em suas retinas as páginas do livro de devedores de Arnaud, seus nomes, endereços, mapas e descrições que aumentaram de importância devido a sua própria trivialidade.

No momento em que via seu senhorio passar-lhe o livro, o absurdo instalava-se na inteligência de Granier página a página, governando-a com lógica assustadora, a histeria usurpou a vez da vontade, a contradição estabeleceu, entre nervos e espírito, um homem discorde ao ponto de exprimir a dor pelo riso. Ao pé da escada, sentado sobre as mãos ao lado de Arnaud, olhos fixos nas páginas, Granier ria histericamente, e o horror de sua risada aumentava…

Ria a ponto de acalmar sua velha melancolia que flutuava em torno do homem nervoso que antes se tornara e o conduzia à desgraça. A volúpia sobrenatural que um homem pode experimentar ao ver correr seu prórpio sangue com movimentos súbitos, violentos, inúteis, os fortes gritos lançados ao ar, sem que a mente os tenha ordenado são fenônemos classificáveis na mesma ordem daquele seu riso. Contudo, Granier ria internamente, pois sua admiração era mais forte que a alegria, e além disso, via em cada nome do negro livro uma grande arte a ser feita. Ele quis aquelas pessoas como antes nunca ninguém as quis. Deliciosa solenidade foi, então, apresentá-las a Granier, ainda que através das ricas anotações de Arnaud, de algumas poucas fotos desfocadas coladas com fita branca sobre as páginas amareladas.

No corredor mal iluminado, Arnaud lia calmamente os nomes dos devedores de seu salão, onde moravam, mostrava suas faces a Granier e logo percebeu que, mesmo sem demonstrar, o seu desejo era o mesmo desejo do pequeno. De motivos muito variados, eram todas as pessoas rasgadamente marcadas pela data e hora em que foram concebidas como devedores, e uma leitura maldosa e saudosista do livro não teria trabalho em colher impressões verdadeiras de total loucura em Arnaud ao guardar tais registros por tanto tempo sem nehuma utilidade prática. Arnaud nunca cobrara suas dívidas, e sinceramente havia esquecido o enorme tempo que as separavam dos dias agora. Ocorre que, aqui neste ponto a datação dos registros torna-se lúcida e essencial, pois passa a ser ponto de partida e é praticada como programa de ações. As datas correspondem ao empenho de submeter a precoce experiência, ou melhor, a experiência inata de Will com as cartas e seu amor pelo pôquer à necessidade de reaver o dinheiro das dívidas do salão, que ainda mal cheiroso e inútil, constituia toda história contemporânea da vida de Willian Granier, e portanto, não se tratava de um esquecido passado, mas de um vínculo do presente com o futuro, pois, enfim, a obra que Will começaria a construir encontrara seu tempo e espaço. Will encontraria aquelas pessoas no tempo certo, afinal, se existe responsável em reaver o valor perdido do jogo, como Will suportaria o fato de não sê-lo?

Nas limitadas condições da pequena Cidade dos Ventos, acontece que a maioria daqueles homens, os homens que Will visualizava e inspirava diretamente do livro eram empregados nos serviços das ceifeiras mecânicas, portanto, subordinados a Greenwood, fruto do desafeto de Granier e contra quem Will voltara sua obstinada vingança ao assassinar Valerie. Outros eram serviçais de Greenwood, alguns poucos eram jovens marqueses de terras distantes, havia ainda outros pouquíssimos nobres falidos e endividados com a Guerra, e à parte os falecidos, havia ainda uma única mulher no livro. Não havia foto da mulher nos registros de Arnaud, apenas um endereço e um nome, Anne.

"- Caro pequeno, vês todos esses nomes…" – Arnaud, depois de um longo silêncio fumando, disse com a voz e olhos baixos.

Will olhou para a expressão do velho ao seu lado, suas dores domésticas, seus insultos de miséria, mesmo o cérebro cingido por um trabalho árduo e contínuo, tudo estava nos olhos baixos de Arnaud com sua deplorável simplicidade.

"- Todas essas pessoas… por tanto tempo debatem a cultura, a economia, a política, veja esses pobres marqueses" – agora Arnaud apontava para as fotos dos nobres com o fumo entre os dedos "- … em vão se conformam com o mundo, são vãs todas as suas cautelas, seus ardis de prudência, todos esses perfeccionismos foram suas faltas e suas qualidades ditas e superlativas, o germe de suas maldições."

"- O que me dizes?" – perguntou Will com voz sumida.

"- Digo que suas falácias lhe trouxeram um esquecimento tão grande, uma preocupação tão ínfima com suas vidas que agora me permito supor que somente suas dívidas podem fazer valer suas memórias, ou pensas que existe aqui escrito algum nome mais importante que sua própria dívida?"

"- Posso cobrar suas dívidas." – ao ouvir tal comentário do pequeno, Arnaud mergulhou numa risada paternal.

"- Não podemos fazer mais nada, a Guerra acabou com todos…"

"- Posso ganhar deles, no jogo, posso reaver o dinheiro." – brilho nos olhos, Will gesticulou ao falar.

Silêncio.

"- Não tens como entrar nas casas desses nobres, que embora falidos, contam com as poeiras de suas pompas e nada mais… mesmo destes serviçais, como os encontraria e convenceria a jogar, a pagar-me?"

Will pensou por um breve instante, e calmo, disse : "- Eu os obrigaria. Ou o jogo, ou a morte. Eu os mataria." Arnaud quis rir novamente, mas o frio ar com que Granier disse aquilo o impediu, então o olhou profundamente, se esforçou para não encará-lo demais enquanto se levantava. "- Seria o jogo de suas vidas." – sentenciou Granier, dando apoio ao velho. Arnaud esquadrinhou o plano antes que Granier claramente o dissesse, e perguntou: "- E se perderes um jogo? E mesmo que ganhes, rirão de você e não te pagarão nada. Seria como jogar um mártir num circo para os leões!" Arnaud aumentou o tom de voz, perdera seu tempo com aquela conversa, decerto.

"- Disse-me que nada que existe no mundo encontra semelhança com o que sentes, senhor. Então, dá-me um voto de confiança, e trago o que é teu para ti." – quando Granier lhe disse aquilo, Arnaud já virara-lhe as costas, e caminhava pelos corredores rumo ao foco de luz fria que morria no assoalho.

"- Caro pequeno, o livro é teu. Eis meu voto de confiança."

Rodrigo Monzani

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