Simplicíssimo

O Marquês (XI)

“- Muitas pessoas foram interrogadas a respeito desse extraordinário e horrível caso, mas não se chegou a nada que lance luz sobre o crime.”
 
Edgar Allan Poe
“Os Crimes da Rua Morque”
1841
 
O tempo de uma noite passou, mas passou intranquilo, como o vôo silencioso das horas negras. Agora, o próprio velho Arnaud, convencido como o pequeno estava convencido de sua empresa de jogos a custo de mortes, dizia não haver mais razão para argumentação especulativa. Estando os próprios convencidos, não procuravam convencer. Seduzidos pelo mesmo ideal, o velho e o jovem coincidiam em pensamentos, e se tornara único o lugar onde a vida de Arnaud morrera, e nascera sua revolta, que era também, por fim, onde o menino Granier morrera, e nascera o gênio. Com a convivência inóspita e diária, os dois muito se aproximaram nas qualidades características, encerrados em seus corações apreciavam o silêncio e as meditações penosas, e ambos afetavam-se com as realidades da Cidade dos Ventos como visões, apenas como visões que, embora não sejam o material de nenhuma existência, realmente se tornaram suas únicas existências.
 
Willian atingira seu melhor nível de jogo. Jogava o pôquer em novas e variadas formas, assumindo um caráter extraordinário de precisão, minuto a minuto, atento em espírito e físico ao domínio que exercia sobre cartas e oponentes. Will, particularmente, não detinha ardente imaginação, mas era preciso, de grandeza nos modos, e seus belos traços lhe traziam uma espécie de virtude juvenil.
 
O ponto de partida de sua concentração era invariavelmente frívolo, embora assumisse uma importância refletida, dedutiva e obstinada. O manejar das cartas, postura e movimentação ocular… o equilíbrio dele se assemelhava, em força, ao desequilíbrio de todos a sua volta.
 
No salão mal iluminado, Arnaud circulava atento entre as parcas mesas, mas sua atenção era diferente daquela de Granier, e se limitava a organizar as rodadas e recolher o dinheiro que Will ganhava, trocados, relógios e jóias de pouco valor, pequenos móveis de luxo antigos… e aqueles puídos tesouros, vendidos ou guardados ajudaram a colher da fealdade do salão destruído, um pouco de beleza. No salão, tudo prosperou a passos lentos; e chegou a primavera até que a polícia descobrisse o cadáver da nova vítima de Granier quando a lembrança do velho Bracknell já se dissipava entre escassas visitas a seu túmulo.
 
Entre a numerosa série de assassinatos que Arnaud e Granier prepararam juntos, nunca surgiu, entretanto, o sentimento do absurdo. Nem mesmo os culpados mortos se sentiam dignos de piedade, naquelas condições, naquela cidade, diante do crime.
 
Em épocas puras e antigas em que os senhores destruíam casas e cidades para sua glorificação, em que um conquistado dominado acorrentado ao cavalo do conquistador era arrastado entre o povo em comemoração; em que o homem mau era firmemente jogado aos leões diante da majestade, frente à torturas tão dignas e cândidas, a consciência dos homens poderia ser digna de lógica e o julgamente, claro.
 
Mas na época da Cidade dos Ventos, na época de Arnaud e Granier, nos campos de cultivo dominados agora pelas ceifeiras sob o véu da liberdade, onde a escravidão se enfeitava com os despojos da justiça, por uma peculiar inversão do sentido naquela época, a própria inocência é colocada em julgamento e intimada a justificar-se. É então, quando esta inocência encurralada age, que se pergunta, e se perde a noção do absurdo: poderia então a inocência, quando age para justificar-se, deixar de matar?
 
“- Poderemos continuar aqui?” – Granier dardejou enquanto retirava as mesas na madrugada.
 
“- Não somente aqui. Não alcançaremos ninguém, mas não podemos deixar o salão.” – Arnaud fumava e mordiscava um pedaço escuro de carne de porco.
 
“- Tenho a impressão que navego pela cidade, dentro do salão, por águas rumorosas e que tormenta alguma pode afetar estas paredes velhas, e nem a calmaria pode nos deter agora.”
 
“- Calmaria… estamos devastados pela guerra, uma floresta de escombros e vadios repulsivos. Navegamos a parte alguma, a mercê dos urubus que nos provam a cada razante.” – Arnaud cuspiu a carne.
 
Silêncio. Granier abriu o livro dos devedores.
 
“- O que me dizes do senhor Etheog?” – foi a pergunta de Will. Aquele nome no livro fora a única baixa do salão, há tempos. Não perdera nada por muito tempo e, percebendo a liberdade com que o gênio de um jogador mais astuto vaporizava seus oponentes, não respondia a seus blefes, ganhando algum dinheiro dos outros jogadores. Etheog provara, ao contrário da repulsa e desprezo que jogadores de carta suscitavam naquelas condições, que benevolência e decência sempre estão ao lado de um verdadeiro espírito e que a cordialidade para com os seus adversários, além de ser um dever moral, é também um dos mandamentos do gosto. Mantinha-se calmo, e mesmo ao arrematar fatalmente uma rodada demonstrava uma espécie de humildade nos modos para os demais confrades. Um espírito diferente, muito diferente. E hábil.
 
“- Não force minha deplorável memória com miudezas sem importância.” – Will percebeu uma certa incerteza e amargura em Arnaud, doses geladas de indiferença, mas indiferença forçada para subtrair algo quando o velho lhe disse aquilo. Por que Etheog lhe despertara aquele comportamento estranho e por que seu nome constava sem o valor de sua dívida? Correu as páginas do livro com o polegar e percebeu que a página onde estava o endereço de Anne, a única mulher do livro, se fora.
 
Will não pensou a respeito, mas instintivamente soube que regressaria em breve ao assunto. Aquilo lhe despertou mais preocupação que curiosidade, mas lhe suscitou uma espécie de medo antecipado, um fino medo onde descobrira, enfim, uma pessoa que poderia ser real para seu Arnaud, alguém que não lhe era somente uma visão ou uma crença fincada em realidade. Não houve sequer uma sombra onde Granier pudesse assentar sua dúvida sobre Etheog e Anne, o que motivava o esquecimento de Arnaud, mas Will teve a instigante certeza que aquilo, agora, lhe seria arriscado.

Rodrigo Monzani

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