Dermeval Saviani, filósofo, em 1992 disse a seguinte frase em um discurso na Conferência Brasileira da Educação (CBE): “agora que não existe mais o socialismo, toda a culpa das mazelas sociais será apenas do capitalismo”. Enunciado verdadeiro, mas só para alguns. A claque do PC do B, que acompanhava Saviani, aplaudiu. Onde Saviani errou? Simples: o capitalismo é um fato, existe e acabou – é nisso que errou. Saviani conferiu status ontológico ao capitalismo, sem mais. Caso ele fosse sociólogo, eu entenderia. Mas tendo vindo da filosofia, eu achei que a frase era engenhosa, mas pobre. No limite, errada mesmo.
Muitos repetiram frases semelhantes no decorrer dos anos noventa. Ainda há aqueles que falam coisas assim. Cada vez menos, é certo, mas ainda há. Frases como essas são enunciados que passaram por cima de tudo que Foucault e outros nos ensinaram. Marx não escreveu olhando para a Realidade Como Ela É, a realidade como “coisa em si”. Marx, tanto quanto Nietzsche e Freud – Foucault lembrou bem[1] – foram os que deram interpretações que solicitaram outras interpretações. Nietzsche teria consciência disso de modo mais afiada que Marx e até mesmo que Freud, segundo Foucault. Mas isso não quer dizer que Marx não sabia que o que ele estava falando do capitalismo era, na verdade, do “capitalismo”, ou seja, de algo que havia sido inventado não pelos capitalistas e trabalhadores e, sim, por Adam Smith, David Ricardo e outros que ele leu. Marx colocou mais um tijolo na palavra “capitalismo” e, enfim, acabou dono da própria palavra. Ele não estava de todo ignorante que o que fazia era “mais uma versão” de um mundo que mudava de modo assustador. “Capitalismo”? Podia ser, na falta de um nome melhor. Para que não usar o nome que os economistas estavam usando? Então, lá foi o nome “capitalismo” mesmo, como o que deveria ser a estampa da infelicidade. Todavia, depois de Marx vieram outros que falaram a mesma palavra para se referirem a outras coisas, de modo que chegamos ao século XX para o século XXI usando o termo capitalismo, como se ele existisse mesmo, do mesmo modo que existe um pedregulho no qual damos uma topada. Mas não é assim que as coisas funcionam na filosofia. Assim agindo, acabamos conversando de coisas diferentes usando nomes iguais e, ao final, ninguém mais está de fato conversando, apenas entrando em longos monólogos coletivos. Nesse sentido, quando Saviani falou em “capitalismo”, ele foi aplaudido uma vez que os que o ouviram, e que eram os que haviam sobrado de um comunismo derrotado (e criminoso – na URSS e satélites, não necessariamente aqui), aplaudiram, pois queriam apenas entender o seguinte: “o modo em que vivemos, o tal sistema capitalista, é obra do demônio, por enquanto o demônio ganhou uma batalha, mas não ganhou a guerra”. Era isso, em 1992. Era isso que os adeptos de Saviani queriam ouvir em 1992.
Hoje é mais fácil conversar com as mesmas pessoas que assistiram a palestra de Saviani e elas verem que reificaram a palavra “capitalismo”, como o próprio Saviani fez.
Então, é preciso novas palavras para fazer nossa filosofia conseguir descrever o mundo. Capitalismo é uma palavra e, às vezez, um conceito. Mas, dias de vida de gente que trabalha no campo não é um conceito, e nem é um dado estatístico. Pode até ser. Mas é um elemento descritivo do mundo bem mais cru que conceitos e com uma capacidade de afirmação que não deveria ser desconsiderada. Então, para além de todo vocabulário prenhe de teoria e de posição política, há um elemento mensurável que é este que a Folha de São Paulo coloca em sua manchete do dia 29 de abril, quase que anunciando o “Dia do Trabalho”: os trabalhadores da cana de açúcar possuem vida útil igual a que foi a dos nossos escravos. Isso basta. Você pode dizer: nunca se preocuparam com o trabalhador sofrido da cana de açúcar e, agora, por causa da bionergia, por causa de Bush, por causa de querer ou não fustigar Lula etc., etc., etc., lembraram das mazelas do campo. Não importa. Volto a dizer: nada de reificar conceitos e palavras. Vamos ao dado bruto: é verdade ou não é verdade que as horas de vida útil de um trabalhador do campo, no Brasil, são iguais às de um escravo negro, aquele existente em nosso país antes da abolição? Caso seja verdadeira a afirmação da Folha, então, aquilo que está descrito nas páginas históricas de O Capital, são o retrato do Brasil de hoje? Ao menos no campo, é assim? Ao menos com um tipo de trabalhador, é assim? Caso as horas medidas sejam verdadeiras, aí não há resposta correta – do ponto de vista da filosofia – que não a seguinte: nossa sociedade precisa mudar isso, pois é inadmissível essa crueldade ainda estar vigente para uma sociedade que já pensa até mesmo em “direitos dos animais”. É inadmissível, para uma sociedade que quiser viver usando da razão, criar uma situação que é a falta total de racionalidade. E não se trata de pensar em socialismo ou capitalismo ou qualquer outro “ismo” prenhe ou não de imbecilidade. Quem pensa assim, em termos “políticos”, é a direita, é José Neumanne e jornalistas da direita, preocupados em denunciar desmandos conquanto não se coloque soluções de esquerda neles. Nessa hora, adoram falar em “política”, adoram vir com “ganhos e perdas do socialismo” etc.
Agem assim, os da direita, pois a solução para o problema é de matriz esquerdista. E não há outra solução.
No caso, a solução é de esquerda, sim. Não há solução na direita para tal mazela do campo. E a solução é relativamente simples: direitos trabalhistas que pareciam atrapalhar o desenvolvimento, ainda não se mostraram nocivos para a sociedade brasileira. Ao contrário, muitos dos direitos trabalhistas conquistados pelo modelo do Welfare State – que teve, sim, sua origem não só nas cabeças de lideranças conservadoras, mas também (e muito mais) em economistas oriundos do marxismo da II Internacional – ainda são válidos no Brasil. Pois uma coisa é falarmos que a pequena empresa no Brasil continua ainda pagando demais para ter empregados, outra coisa é falarmos que os trabalhadores do campo estão em condições escravas. Uma verdade não anula a outra no caso. Posso ser chamado de direitista ao dizer que devemos flexibilizar os encargos trabalhistas que caem sobre a maioria das nossas pequenas e médias empresas. Tudo bem, quem fala isso pode até estar certo; isso seria uma fala da direita – concordo. Mas será que a esquerda tem outra resposta para o problema de que o Brasil não consegue ter empresas médias sólidas, por causa de encargos trabalhistas malucos? Creio que, nesse caso, só a direita acertou, ainda que ela nunca tenha feito nada para resolver o caso. Agora, a direita consegue dar resposta para essa barbárie enunciada na Folha? Não, nesse caso, não consegue. Se der resposta, vai ser a construída na esquerda, ou seja, vai ter de falar da extensão dos direitos trabalhistas para o campo, a fiscalização do trabalho, a reforma agrária, a mecanização vigiada e controlada, etc. etc. Nenhuma solução de direita caberá nesse caso.
É claro que, no ajuste da solução, a proposta final poderá não ser mais a da esquerda, ao menos não de uma forma bruta. Temos de ver como que questões econômicas estão postas no jogo. Por exemplo: se colocamos direitos trabalhistas no campo, para valer, e esses direitos não vierem a ajudar na ampliação da vida útil, estaremos onerando o estado – e não os empresários e trabalhadores diretamente envolvidos, que irão pagar os encargos trabalhista – por uma razão simples: todos nós estaremos financiando uma previdência social, e portanto hospitais, que irão gastar muito mais do que gastam até o momento para tratar das doenças oriundas do trabalho no campo. Ou seja, quando montamos uma previdência social que inclui, obviamente, tratamento médico, é necessário de incluir também, na legislação, diminuição das horas de trabalho e uma série de outras medidas, e então ver o custo disso para toda a sociedade, e não só para os grupos diretamente envolvidos com o problema. O resultado final tem de ser balanceado. Pois se adotamos o tratamento médico pago pelo estado e, então, por causa de condições de trabalho específicas, que não puderam ser alteradas, tivermos um contingente enorme de trabalhadores rurais doentes, todos pagarão e a tal previdência social, logo, anunciará sua falência. Resumindo: medidas de esquerda em favor do Welfare State não podem ser medidas pontuais, elas precisam ser pensadas de modo geral, global, a longo prazo, etc. Todavia, como a história não proporciona isso, elas são medidas que aparecem de modo pontual – inevitavelmente. Consegue-se a expansão de direitos por meio de luta social, greves, movimentação política, etc. Assim, nem sempre o resultado histórico é sempre favorável. Pode passar um século até que um país ajuste todos os seus resultados históricos em um sistema racional de Welfare State. E tudo isso depende, também, da sorte. E agora até de situações que não dávamos mais atenção, como o caso do Planeta resolver se revoltar contra tudo que o agrediu até o momento.
Assim, tais questões não podem ser manchadas pela discussão “capitalismo” ou “não-capitalismo”. Elas têm de ser pesadas dentro de um plano de ação que leve em conta a experiência de outros países. No caso, é necessário ver como que podemos introduzir a máquina no campo de um modo menos sofrido do que aquele que ocorreu na industrialização do século XIX nos países hoje aceitos como “países ricos”.
O capitalismo não existe. Saviani estava errado. Mas os males denunciados sob a rubrica de “males do capitalismo” parecem existir. E como o ótimo é inimigo do bom, não vamos pela construção da utopia que salvará todos e transformará todos em anjos. Não! Vamos por algumas medidas que tragam melhora de modo mais imediato a vida das pessoas que estão no trabalho da cana. Não podemos ser civilizados a partir de uma regra única, do tipo, temos de ter metrô barato, direitos dos animais, ruas limpas, menoridade aos 16 anos, direito ao aborto, direito de expressão, respeito de minorias, etc. – isso tudo não basta. Para ser civilizado é preciso que nossa população tenha o direito de trabalhar e viver o tempo que se espera que um ser humano viva. E isso, tem de ser para toda a população. Agora, que a energia alternativa deixou de ser alternativa, os trabalhadores que cortam as mãos na folha da cana precisam reclamar. Pois é a hora em que poderão ser ouvidos.
Paulo Ghiraldelli Jr.
“O filósofo da Cidade de São Paulo”.
Editor da Contemporary Pragmatism, de New York
Diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana, CEFA, de São Paulo.
[1] Em sua palestra “Nietzsche, Freud e Marx”, publicadas no Brasil pela Editora Princípio.
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