Intenção do MEC
Há a intenção do MEC de atuar em apoio efetivo aos municípios, a fim de tornar o ensino fundamental brasileiro capaz de gerar jovens em um nível educacional mais próximo daqueles apresentados pelos países desenvolvidos. Essa intenção faz parte da idéia do ministro Fernando Haddad de colocar a União mais próxima da responsabilidade para com o ensino das crianças, uma vez que o MEC, desde a sua criação, sempre se manteve mais ligado ao ensino superior, por uma série de razões históricas (que não é o caso de serem abordadas neste texto). Segundo o ministro, o MEC já possui os mecanismos matemáticos de mensuração que possibilitarão o fornecimento de índices capazes de revelar se nossos alunos estão ou não progredindo, em comparação com o de outros países. O que falta, agora, é a ação no sentido de atingir os municípios e, enfim, caso seja necessário, empurrá-los para a meta a ser alcançada. Como isso será feito? Basicamente, por um instrumento: convênios entre a União e os municípios.
Nessa trilha, o ministro da Educação conversou comigo e, segundo ele, conversas desse tipo estão sendo ampliadas de modo a atingir outros intelectuais interessados na questão educacional e dirigentes de entidades da área, tanto as teóricas quanto as sindicais. Caso eu tenha entendido corretamente o ministro, o que ele deseja ouvir são sugestões para que o trabalho do MEC junto às prefeituras dos municípios – os convênios – não se transforme em duas coisas: um balcão de negócios político-partidários e uma peça morta, incapaz de gerar rapidamente os objetivos que tem de ser alcançados. No Brasil nós temos condições de fazer isso? É difícil dizer sim. Mas, no meu caso, é difícil não tentar ajudar.
Convênio
Pois bem, mas o que é o convênio entre o MEC e cada município? Segundo o que o ministro expôs, de modo rápido e com os limites de uma conversa por telefone, haverá um programa que inclui recursos para o município e um apoio técnico programado. Fora disso, o projeto será construído, em boa medida, com as sugestões dos que ele tem procurado ouvir. E eis então que uma parte da responsabilidade cai nas mãos, agora, de filósofos como eu que, enfim, criticaram o governo e que dizem por aí que sabem algo do campo educacional. Como não escrevo “para aparecer” e, sim, para realmente resolver os problemas, não tenho nenhum medo de dedicar parte do meu tempo imaginando quais as sugestões que eu posso dar. É claro que me esforço, aqui, para não fazer “chover no molhado”. Não quero triplicar sugestões que, é certo, virão de entidades e outros intelectuais. Portanto, não digo aqui neste texto o que, pelo sei do campo educacional, virá por parte de outros. Reduzo as condições do convênio, neste texto, aos aspectos que considero prioritários na educação brasileira de crianças.
Começo por uma pergunta básica. O que é um convênio em educação? Eis a resposta: um convênio em educação é um acordo entre partes para uma tarefa pedagógica e educacional comum, sendo que cada parte entra no acordo com tarefas diferentes e determinadas. Portanto, aqui, na definição de convênio, já temos quase tudo que precisamos. Convênio implica em realização de uma tarefa por ambas as partes do acordo, mas tais tarefas, em princípio, não devem ser sobrepostas. Cada parte deve completar a outra. E, no caso, ambos os lados atuarão tanto no âmbito do campo pedagógico quanto do campo educacional. O pedagógico diz respeito ao que o convênio deve à filosofia e às teorias educacionais. O educacional diz respeito à implementação do convênio, quanto ao trabalho de ensino propriamente dito. Não coloco, aqui, um terceiro elemento, o organizacional ou o de gestão. Estou partindo da premissa de que a organização e a execução do convênio devem se distribuir entre o pedagógico e o educacional, sem a criação de qualquer burocracia exterior a essas duas instâncias. Não haveria, portanto, uma burocracia privilegiada responsável pela “gestão” do convênio.
Erros do passado
Todavia, antes de falar dos aspectos específicos do convênio, é necessário lembrar algumas situações negativas de convênios anteriores – é claro, convênios dos estados com municípios. Eis aí o problema: os convênios em educação feitos pelos estados com seus municípios, na maior parte da nossa história republicana, raramente seguiram com rigor a definição de “convênio”. O estado poderia fornecer algum apoio, através de uma universidade, mas o prefeito, em contrapartida, cumpria o convênio apenas oferecendo migalhas: local para aulas e condução por meio de veículos públicos, quando muito. Os prefeitos estavam errados? Nem sempre. Eles não se entusiasmavam muito, uma vez que os próprios professores não se sentiam confortáveis com o que tinham de fazer por meio do convênio: cansativa “capacitação em serviço” e, o que é pior, feita a partir de departamentos de educação de determinadas universidades, muitas vezes completamente despreparados para o serviço. Sendo assim, a primeira atitude do MEC, para romper com essa tradição que gerou uma “cultura” nos estados, no meu entendimento, é a de criar uma regra para os convênios que implique em responsabilidade de dupla mão, com situações muito bem definidas: do lado do prefeito é necessário que ele possa apontar com clareza e em detalhes o que vai oferecer e como que vai fazer o que diz; do lado do MEC é necessário não só ter o dinheiro, mas gerar uma situação em que o prefeito e os professores saibam que o convênio vai de fato ser útil, e que não vai ser mais uma “perda de tempo” às custas do sacrifício do professor.
Tarefa do MEC
Começo pelo MEC. O MEC não pode e não deve ficar refém de sua própria equipe. Aqueles que vão desempenhar algum papel no “apoio técnico” do MEC – tanto no trabalho inicial de avaliação das deficiências ou eficiências dos municípios quanto no trabalho de apoio propriamente dito – aos municípios não podem ter condições de colocar o ministro da Educação “na parede”, em determinado momento do trabalho, cobrando “mais condições” e, pior ainda, usando do sistema de remuneração escolhido como peça para uma mera ampliação salarial, caso já sejam funcionários públicos ou, no caso mais clássico, professores universitários da rede estatal e particular. Esse é o primeiro cuidado que o MEC deve ter: 1) as condições de trabalho devem ser definidas no início, sem promessas vazias ou espera de recursos que podem não vir e, muito menos, etapas definidas sem os recursos; 2) a equipe (ou equipes) não deve ter autonomia, em relação ao MEC, para o trabalho e muito menos deve ser formada, ao menos em seu eixo principal, por professores universitários da rede federal ou particular que já estejam organizados como “grupos” – no bom e no pior sentido dessa palavra – em suas próprias universidades.
Para evitar isso o MEC precisa ter uma “força tarefa própria” (FT). Esse grupo, FT, ainda que não seja o único, é claro, é o grupo dirigente de outros grupos de apoio técnico. A FT deve ir aos municípios para avaliar e trabalhar tanto quanto os outros grupos, subordinados a ela. Então, na prática, as universidades podem fornecer mão de obra para a execução das “visitas técnicas” do MEC, tanto para a avaliação do local quanto para o trabalho educacional que se venha a fazer em cada município conveniado. Mas elas, as universidades, assim fazem a partir de indivíduos singulares, solitários e escolhidos pela FT a partir de competências associadas a cada trabalho que vai ser realizado. O MEC precisa ter uma equipe própria, com garantia de continuidade de trabalho, capaz de organizar e administrar o apoio técnico por todo o país, com capacidade de não deixar que exista o que sempre existiu nos estados, que é a “terceirização” dos trabalhos técnicos por meio “concorrência pública” para equipes de faculdades particulares ou públicas. Esse tipo de mecanismo não funciona. A estrutura das universidades, suas constantes greves e seus grupos políticos ou “igrejinhas” não permitem ao MEC arrancar delas, como instituições, uma boa FT. Nem mesmo boas equipes subordinadas ao que seria a FT.
A FT precisa ter tempo e ser dedicada. Seus membros não podem estar ali “fazendo bico” e nem devem ser “o banco de reserva” da intelectualidade brasileira. Ela, a FT, deve estar em contato direto com o ministro. Mas, ao mesmo tempo, seus membros deverão estar com a “mão na massa”, indo aos municípios junto com as equipes técnicas regionalizadas que irão, de fato, fazer as tarefas necessárias conveniadas, pela parte que cabe ao MEC. A maioria dos convênios entre estados e municípios não trouxe melhoria exatamente na medida em que as tarefas foram deixadas para as universidades e se transformaram em disputa política ou de “igrejinhas” por complementação salarial e aquisição de poder, gerando todo tipo de confusão a partir de vontades de reitores e “chefetes” locais em departamentos e diretorias de faculdades. Isso também ocorreu quando determinados convênios foram criados a partir de mão de obra do próprio município. Caso isso se repita, não haverá o que cobrar do prefeito. Pois ele já conhece isso e, se não conhece, seus professores conhecem. Os convênios em que os estados deixaram suas universidades serem os parceiros executores não trouxeram outro resultado que não o gasto, para o governo estadual, e a formação de grupelhos e até quadrilhas, nas universidades. Foi uma via de dupla mão de deterioração do convênio e do serviço público. Que o MEC saiba: o professor universitário, em geral o mais incompetente, não perde a pose. Ele quer “cargo”, ele quer “chefia” e, mesmo quando é pesquisador, ele quer ter o próprio grupo e uma tarefa distinta na universidade. Isso, no Brasil, é algo muito forte na cultura do professor. Aliás, toda região fraca em ensino e pesquisa conduz o professor universitário, naturalmente, a se deslocar para objetivos secundários, em geral políticos e financeiros. É a busca de reconhecimento em uma situação paralela ao que seria a sua missão como intelectual. Então, um convênio, no Brasil, sempre significa, para o professor universitário ou para quem o organiza “na base”, uma única coisa: “o governo tem dinheiro e está fornecendo a grana para quem faz isso e aquilo – vamos então fazer isso e aquilo”. Esse tipo de mentalidade é a erva daninha de nosso meio educacional e, em especial, o universitário.
Isso, no Brasil, funciona como um impeditivo para que o MEC confie nas universidades. Pois, não raro, o professor universitário almeja ter uma vida acima dos padrões da população em geral e, para tal, se envolve em tudo que “pode render algo”. Não deixar que a situação entre a União e os municípios chegue a cair nas mãos de “abutres por complementação salarial ou prestígio” é o objetivo principal, ao menos inicialmente, da FT gerada no MEC e controlada no MEC a partir de um contato direto com o ministro da Educação. A FT deve ser capaz de gerar nos outros grupos, subordinados a ela, um modo de trabalho que impeça que os convênios sejam réplicas do que foram os convênios entre governos estaduais e municípios. Já erramos demais para não ter aprendido.
Os municípios
Passo, agora, a comentar a parte que cabe aos prefeitos. Os municípios devem ser avaliados e, segundo as deficiências, precisam ganhar recomendações do MEC e, para participarem do programa que irá colaborar para que as recomendações se efetivem, os prefeitos devem expor o que possuem e como irão usar disso no convênio. Então, nesse caso, há uma série de itens a serem apresentados pelos prefeitos. E, conforme o dirigente municipal da educação, ele já sabe quais itens já foram apresentados em outros convênios e, não raro, estarão de fatos disponíveis para o convênio novo, agora com a União. Dependendo da riqueza do município e das condições intelectuais e morais de seus dirigentes, as coisas se ampliam ou minguam. E então, aqui, é necessário vigilância. Por parte de quem? Por parte do MEC. E quem deve fazer isso? A própria FT do MEC que, enfim, deverá ter algum conhecimento não só das condições físicas do município, mas das condições intelectuais e morais dos dirigentes educacionais do município. Pois a FT deve ter o poder de gerar grupos mais estruturais e grupos mais contingentes, segundo o trabalho que quer fazer, dependendo do que cada convênio objetiva. Pois cada convênio terá uma especificidade e, sendo assim, não cabe estabelecer a relação “para um município um grupo”, mas o necessário é outro tipo de relação: para cada trabalho, seja onde for, a FT prepara uma equipe específica.
Um prefeito não poderá participar do programa através do seguinte procedimento. Ele fica sabendo que “há dinheiro no MEC” para quem “pegar um convênio”. Ele não entende nada de educação e nem quer entender. Ele quer saber “o que dá voto e o que não dá voto” – para ele continuar na carreira política. Então, ele, que nomeou um parente ou apadrinhado político para a secretaria de Educação, diz para ele: “vai meu secretário de Educação e Cultura, pegue esse convênio aí e dê um jeito disso reverter em voto”. “Vá lá em Brasília e vê se é vantagem de a gente participar”. Então, o secretário olha e, burocraticamente ou, pior, de modo a favorecer amigos, cria determinadas “condições” para que o convênio se realize. Depois, de resto, o que se faz é agradar a “equipe do MEC”, quando ela está na cidade. Tanto para a avaliação inicial quanto para o trabalho em si e avaliação final, tudo que se faz na cidade, nesse tipo de atuação, é apenas “receber bem” e “ir tocando”. O MEC tem de ter condições de quebrar esse marasmo, essa mentalidade, muitas vezes gerada pelo aprendizado do município com as experiências anteriores. O MEC e sua FT, a partir de avaliações, podem criar uma série de recomendações como sendo requisitos básicos para o prefeito participar do programa. Esses requisitos devem ser flexíveis por região, mas devem ter um núcleo comum. Qual é esse núcleo comum, estrutural?
Há alguns itens básicos para os prefeitos cumprirem de modo a colocarem suas cidades no rol de “cidades aceitáveis” para firmarem convênios com a União. Independentemente – e esta palavra deve ser obedecida – do tipo de serviço da FT e de seus grupos, para a realização do conteúdo do convênio, a contrapartida oferecida pelos prefeitos deve ser:
1) o município deve ser capaz, segundo um prazo determinado, de se organizar física e estruturalmente de modo a participar de capacitação dos seus professores, junto de programa recomendado pelo MEC, dentro do convênio em questão;
2) tal participação na capacitação deve contar com o município no sentido dele, em boa medida, ser capaz de colocar seus professores em regime de estudo, liberados completamente dos seus trabalhos por um período de no mínimo um semestre a cada 3 anos (a capacitação “em exercício” é totalmente ineficiente);
3) esses professores devem ser concursados e, caso não sejam, uma das tarefas do convênio é promover o concurso para eles, o que deve ser feito já no interior do convênio, com a equipe do MEC dirigindo as provas;
4) o prefeito deve apresentar um plano de carreira (que considere o mérito e não apenas o tempo de serviço) para o professorado concursado (caso não tenha um, o MEC deverá ter condições, através da equipe do convênio, de lhe propor um) e os benefícios do professorado não concursado;
5) o concurso dos professores deve conter uma bibliografia de clássicos necessário para o bom trabalho docente, segundo a FT e a cidade que quer participar do convênio, e esses livros devem ser adquiridos em uma quantidade razoável de exemplares pelas prefeituras, para suas bibliotecas;
5) o prefeito deve estar compromissado em ter em seu município um bom e competente (e concursado) “pessoal de apoio técnico” à educação: bibliotecário; técnico de laboratório, técnico de informática, médico escolar e professor de educação física;
6) o prefeito deve apresentar, no início e no decorrer do convênio, um cronograma para a criação ou manutenção e melhoramento de biblioteca municipal, laboratório, parque de informática e parque esportivo (esse programa não deve incluir apenas melhoria física, mas deve implicar em cronograma de funcionamento desses aparatos); além disso, é claro, deve mostrar que esses setores educativos estão funcionando, sem interrupção, e de modo útil, para a população da cidade.
É claro que uma série de outros itens podem ser lembrados. Todavia, esses seis itens caem diretamente sobre o básico do que toda e qualquer pedagogia recomenda. É difícil imaginar uma pedagogia que retire um desses itens do que seria o patamar mínimo de investimento sério de um município no âmbito do campo educacional. Não há como imaginar que a educação de um município possa acontecer em um local onde esses seis itens são desobedecidos propositalmente por seus prefeitos. Qualquer tipo de convênio, por qualquer pedagogia que o venha julgar, dificilmente acreditará que houve um trabalho sério em um município aquém das condições postas nesses seis itens. No passado, sim. Nas condições legais atuais, certamente não, levando em consideração a maneira como que um prefeito deve agir com as verbas para a educação.
Assim, para que o campo educacional fique satisfeito, é necessário que o campo pedagógico dê um rumo certo para o convênio. O rumo certo é o que imagino como consenso das pedagogias quanto ao que um município precisa fazer para dizer que, a partir daí, pode estar em condições de usufruir de modo proveitoso ao conveniar com a União. Conveniar com MEC deve, antes de tudo, significar na cidade conveniada motivo de orgulho. É necessário criar uma “cultura municipal” capaz de ver cada habitante dizer o seguinte: “ah, a Maria é professora municipal, ela não é uma professora qualquer, pois ela fez parte de um convênio com o MEC e, com isso, ganhou uma qualificação especial”.
Pode-se objetar que haveria uma desmotivação de alguns prefeitos em relação aos convênios. Sim. Certamente que sim. Todavia, cabe ao MEC “vender o seu peixe”. E cabe ao MEC lembrar ao povo de cada município que seu prefeito está sendo omisso. Isso, em geral, é fácil de fazer quando o programa se mostra sério nos primeiros municípios.
Paulo Ghiraldelli Jr.
São Paulo, 31 de janeiro de 2007
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