O argentino Fernando Birri e o colombiano Garcia Márquez em meados dos anos 70
Num entardecer mágico, um clima quente, natural das ilhas do Caribe, nascia a Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV) de Cuba no dia 15 de dezembro de 1986. Fez-se materializado o sonho de toda uma geração de cineastas que estabeleceram similaridades nos conceitos e nas formas da produção cinematográfica latino-americana.
Construída, a 35Km da capital Havana, na província de Santo Antonio de los Baños, (cidade natal do trovador Silvio Rodriguez), a Escola Três Mundos, como é também conhecida por receber estudantes de cinema e televisão da América Latina, da África e da Ásia, é mantida pela Fundação do Novo Cinema Latino-Americano onde formam profissionais e "militantes" por um cinema independente e terceiro-mundista.
Desde sua inauguração, o debate gira em torno do desafio comum: a criação de um novo cinema latino-americano, que fosse esteticamente original, consolidasse uma identidade própria no panorama internacional e que tivesse como projeto subjacente à reflexão sobre os problemas peculiares à América Latina, como o subdesenvolvimento, o abuso do poder, as grandes desigualdades sociais, o autoritarismo, a luta pela democracia e, tangenciando todas essas questões, o papel do intelectual e do artista nesse contexto. À discussão destes temas-argumento corrobora a dialética da tradição antiescolástica da Escuela, que resgata fervorosamente as correspondências existentes entre a defesa dos "fotodocumentários" de Fernando Birri, o "cinema urgente" de Santiago Alvarez, e o "cinema popular" de Nelson Pereira dos Santos ou, num outro plano, entre o "cinema novo" de Glauber, o "tercer cine" de Fernando Solanas ou o "cine imperfecto" de Julio García Espinosa.
O presidente de honra da Escuela, Gabriel Garcia Márquez, usou sua influência e dinheiro do prêmio Nobel de Literatura, em 1982, para financiar a reforma e compra dos caros equipamentos. O escritor colombiano disparou aos alunos: "Vocês podem ser os desempregados mais caros do mundo".
O prestígio da EICTV atravessa barreiras geográficas e políticas e tem contado, desde do início, com um corpo de direção e professores de grandes nomes do cinema. Imagine ter oficinas com Francis Ford Coppola, Ruy Guerra, George Lucas, Costa-Gavras, Jean Claude Carrière, Robert Redford ou Spielberg, que costumam fazer visitas à Escuela.
Da sua fundação até 1991 a EICTV foi dirigida pelo realizador e teórico argentino Fernando Birri e em seguida, por quatro anos, pelo atual secretário do Audiovisual do governo brasileiro, Orlando Senna, onde recebeu o Prêmio Rossellini destinado à "mais significativa instituição voltada para a formação de profissionais de cinema", na 46ª edição do Festival de Cannes de 1993.
Atualmente, quem a coordena é o cineasta e escritor Julio Garcia Espinosa que propagou sua tese do cinema imperfeito. Dizia ele: "hoje em dia um cinema perfeito – técnica e artisticamente realizado – é quase sempre um cinema reacionário". A expressão imperfeito era o termo mais radical da impotência de fazer cinema e a necessidade de estimular a produção com os meios que tinham, através da máxima glauberiana: "uma câmera na mão e uma idéia na cabeça". Outra acepção de imperfeito era não se submeter à ditadura estética e narrativa norte-americana, diria Godard. Resultado de toda uma linha de produção que convergiam na busca desta síntese são: Las Avenuras de Juan Quinquin (1967) de Julio Garcia Espinosa, Memórias Del Subdesarrolo (1967) de Tomaz Gutiérrez Alea, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha, ou Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos.
A EICTV não forma graduados em cinemas. Porém, mais de 700 estudantes de 48 países já se formaram em suas especializações pelos cursos regulares que duram dois anos ou através das oficinas de verão, que recebem pelo menos 3.000 jovens de 36 países. É tão intensa a produção prática que obriga os alunos (roteirista, produtor, diretor, montador, técnico de som ou diretor de fotografia) a polivalência, numa permanente troca de experiências, técnicas e formatos. "Filma-se de câmeras de vídeo Hi-8 até Aaton 35mm", disse Roberto Sanches, mexicano que cursou documentário em 2003.
Como em qualquer escola não poderiam faltar os desastres. Algumas dezenas de horas de imagens desfocadas, granuladas, tremidas ou ainda, metros de negativos velados ou estourados compõem o ambiente e os exercícios realizados. "Permitir as falhas é necessário para abrir espaço para o erro, não por apologia ao erro", explica Sérgio Muniz, documentarista brasileiro e um dos fundadores da Escuela, mas para "apoiarem as loucuras maiores e deixar os demônio soltos, para depois o mercado acalmar", completou Garcia Espinosa. O isolamento da capital Havana faz da EICTV um local propício para um mergulho dia e noite entre filmes e livros sobre a Sétima Arte, "o que faz com que três meses de convivência nesse espaço equivalha certamente a um ano curricular de qualquer outra escola do mundo", arremata Muniz.
"O cinema deve constituir um chamado a consciência e contribuir a liquidar a ignorância, a solucionar problemas ou formular respostas para buscar a dramática e contemporaneidade dos grandes conflitos do homem e da humanidade", traduziu seu tempo, Glauber, que viveu em Havana de 1971 a 73, tendo realizado o filme História do Brasil e montado Câncer, que ainda hoje, é admirado e estudado pelos cinéfilos. Quem for a Escuela se surpreenderá com quatro estátuas, uma delas de Glauber (as outras três de Fernando Birri, Coppola e Gabriel Garcia Marquez). Mesmo, assim, quem procura a Escuela também busca seu espaço ao sol.
Muitos são os alunos e professores que não encontram contradição na produção latino-americana e no mercado. As novas tecnologias e suas perspectivas, a publicidade e a Nueva Onda, como chamam o boom do novo cinema latino, estão na ordem do dia do debate e do exemplo a ser seguido por filmografias como: Amores Perros (México, 2000) de Alejandro G. Iñárritu, El Crimen del Padre Amaro (México, 2002) de Carlos Carrera, Y tu Madre También (México, 2001) de Alfonso Cuarón, El Hijo de la Novia (Argentina, 2001) de Juan José Campanella, Cidade de Deus (Brasil, 2002) de Kátia Lund e Fernando Meirelles, Lavoura Arcaica (Brasil, 2001) de Luiz Fernando Carvalho ou Suíte Havana (Cuba, 2003) de Fernando Perez demonstram essas congruências.
Há um "frisson" cinematográfico em toda a ilha socialista. Os cubanos lotam as milhares de salas de cinema e vídeo para assistirem a suas "películas". E, o governo cubano desde o triunfo da Revolução investiu em seus filmes. Uma das primeiras leis, após a tomada do poder pelos "barbudos" foi a criação do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (ICAIC), seria a nossa antiga Embrafilme. Mesmo com uma produção ínfima, com cerca de 2 a 3 longas-metragens e 10 curtas-metragens a cada ano, mais de 60% da população tem acesso aos filmes nacionais e estrangeiros. O preço do ingresso custa 2 pesos, mais ou menos, 20 centavos da nossa moeda. Também, o Festival del Nuevo Cine Latinoamericano pára a capital Havana todo mês de dezembro e consolidou-se como um dos principais eventos cinematográficos da atualidade.
Durante 19 anos o povoado de Santo Antônio de los Baños tem sido a principal locação dos futuros cineastas. Com apenas 42.300 habitantes, Santo Antônio ainda conserva as charretes nas ruas, o trem da década 20 e a arquitetura secular. Tudo normal para uma província do interior se não fosse a 2ª região mais filmada do mundo, segundo dizem por aqui, perdendo apenas para o Estado da Califórnia, nos EUA.
Vários curtas-metragens realizados por alunos da EICTV têm sido premiados em mostras e festivais de todo o mundo. "Cría Cerdos", do chileno Ignacio Ceruti, conta a história de 2 irmãos que criam porcos e galinhas, num casebre com sua velha mãe. O curta, "Bajo Habana", do cubano Terence Piard, trata do tráfico de drogas na juventude havaneira. Já, "Paraíso Extraviado", do colombiano Andrés Buitrago conta uma comédia dramática, onde o personagem é perseguido pela fatalidade e, ao longo dos 12 minutos, vai perdendo a mulher, a mala, o dinheiro. E, por último, uma estudante brasileira, Joana Oliveira, ganhou o prêmio de melhor filme no Festival Primeiro Plano, de Juiz de Fora, com o curta "Habanera".
Em julho de 2004, o furacão Charley atravessou Havana perto da zona em que se encontra a Escuela. Destruiu parte da estrutura física. Porém, sua reconstrução já está bem adiantada, pois: "um país sem imagem é um país que não existe", disse Julio García Espinosa, que demonstra a importância do audiovisual para Cuba. Necessário, talvez, o Brasil entender mais essa frase.
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