Ele, músico. Ela, a sua guitarra. Por muito tempo se bastaram, mas agora estava surpreendentemente esvaziado de qualquer criatividade. Motivo algum que explicasse ou que aceitasse como plausível para tal. Buscou as forças que ainda tinha. Decidiu enfrentar a realidade. Mudou-se para uma casa há muito desabitada. Precisava de tranqüilidade. Sua mente assim exigia. Um lugar onde não houvesse a preocupação de seus acordes perturbarem o entardecer.
Um dia, ainda antes do sol dar sua graça, observou pela janela um vizinho tirando o pó do piano. Interessou-se pelo sujeito. Por vezes seguidas, durante um longo tempo, inspirou-se nele e, ao fim da tarde, colocava na guitarra tudo o que captara.
E foi assim que ressurgiu o genial. Degustou Frank Zappa, Frank Solari, Frank Jorge, Frank Sinatra, Frank Graf, Frank Eulry, Frank Reyes, Frank Loesser, Frank Black, Frank Popp, Frank Maurel, Frank Corcoran, Mc Frank e Frank Aguiar (tu vê!). Quem sabe até muitos outros Franks por aí. Costurou tudo, virou quase um Frankstein.
Entusiasmado com o resultado, ali mesmo gravou um disco, com o propósito de presentear seu vizinho. Um estranho sim, a quem talvez pouco importasse, mas o cerne das suas repetidas auroras resplandecentes.
Ao final de um dia, concluído o trabalho, foi ao seu encontro. Assim, despretensiosamente, sem muito alarde, bateu-lhe à porta. Os olhares se tocaram, disseram muito mais que palavras. Estendeu a mão, entregou o disco e, sem nada que pudesse dizer, acenou um adeus, voltando para casa.
No dia seguinte, antes do clarear do dia, pegou um táxi até o aeroporto. Saiu para a uma turnê inédita, sem nunca mais voltar, embora sua presença fosse ali percebida para o resto da vida, em cada nova música de piano, em cada nova letra composta.
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*Baseado no belíssimo conto “Crepúsculo”, de Virgínia Allan.
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