Simplicíssimo

O crime do alfabeto

Depois de um breve período em recesso, a Confraria dos Literários retomava as atividades naquela noite. Os rituais seguiam sendo executados ao pé da letra, como bem suscitava o tema. De diferente mesmo, só a presença de um novo membro, o que exigia o protocolo já vivenciado pelos demais.

O mordomo entrou no recinto trazendo a bebida sagrada. Serviu cada cálice e retirou-se para não atrapalhar o tradicional brinde. Todos beberam até a última gota. Estavam prontos.

A venerável mestra abriu a sessão, determinando a leitura das obras trazidas pelo escritor à sua direita. Bem postado na cadeira, ele limpou o pigarro da garganta e abriu seu livro. Mas para surpresa de todos, soltou apenas uma expressão de espanto.

– As letras desapareceram! – disse ele, com a voz embargada, mostrando as páginas em branco para os demais.

– Ohhhhhh! – exclamaram todos.

– Não podemos perder tempo. Na próxima reunião você lê. – manifestou-se a mestra, fazendo a ordem andar.

O segundo escritor postou-se na cadeira, limpou o pigarro da garganta (mas que ritual mais estranho este) e abriu seu livro, demonstrando o mesmo espanto que o colega.

– As minhas também! – disse ele.

– Ohhhhhh! – repetiram.

A incerteza e a angústia tomaram conta do ambiente. A quebra de decoro foi geral. Ao mesmo instante, cada um abriu seu livro, deparando-se com o mesmo branco, carente de qualquer mancha que fosse, muito mais ainda do alfabeto. Então, olhares desconfiados voltaram-se para o iniciante. Num misto de assustado e perplexo, ele disparou uma resposta:

– Eu não fiz nada, vejam: o meu também está assim!

A mestre, sem saber o que fazer, socorreu-se das publicações dispostas na estante. Seu grito foi aterrorizador:

– Todos os livros estão assim!

Nem as capas diziam mais do que o vazio nelas impresso. As reações tomaram proporções variadas, típicas daqueles Big Brothers Brasil mais fuleiros.

– Isto é um crime, temos que investigar! – disse a escritora advogada.

– E se for um surto coletivo? – disse o escritor psicanalista.

– Não interessa, vamos aplicar a lei, doa a quem doer! – retrucou ela.

Assim do nada, a figura do mordomo se fez presente, agora de forma impositiva e algo sarcástica:

– Senhores, acalmem-se, senhores! – gritou, lançando sobre cada livro um pedaço de papel celofane colorido, o que trouxe de imediato as palavras de volta. O discurso seguiu sem interrupção:

– Tão importante quanto as letras de quem escreve, são os olhos de quem as lê.

Era seu grand finale. Estufando o peito de triunfo, entregou uma carta de demissão à mestre, onde tudo se explicava:

 “Dedicar-me-ei agora, inteiramente, ao que antes ocupava apenas minhas horas vagas: a mágica e o ilusionismo, visto que já tenho o truque perfeito.”

E lá se foi ele, porta afora, provando mais uma vez que o culpado é sempre o mordomo …

Eduardo H. Sabbi e Ibbas Filho

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