São Paulo, 22 de agosto de 2006.
ANONIMOUS
Não conheço minha mãe. Nunca a vi. Nem irmãos, nem pai, nem família. Tenho minhas dúvidas se realmente nasci de um ventre, ou se apareci no mundo, como o Exterminador do Futuro.
O certo é que eu cresci nesta rua. Comi o que me deram. As donas de casa davam-me seus restos, e eu nem precisava pedir. Nunca faltou nada, nem sobrou… Até de ceias de Natal eu participava.
Aos poucos fui ganhando a confiança da molecada. Brincava com um, depois com outro, e rapidamente estava no meio das traquinagens de toda a gurizada. Tempos bons.
Eles foram crescendo, mudando de prioridades, mas no que era possível eu era engajado. Até acompanhei alguns namoros. As namoradas não se sentiam à vontade, mas depois se acostumavam. Algumas até me pegavam como confidente, nas amarguras de suas vidinhas amorosas.
Apaixonei-me uma única vez, marcante. Alguns olhares, poucas palavras, um rápido reconhecimento, e os hormônios deram conta do resto. Meio promíscua a donzela… Assim como veio, foi-se, e nem sei se já sou pai, ou avô, quem sabe.
Meus amigos gostavam de fazer brincadeiras onde eu sempre me ferrava. Nunca fui muito esperto. Caía em qualquer pegadinha da garotada. Gargalhadas gerais, inclusive minhas, e sentia-me feliz em ser, nestas vezes, o centro das atenções.
Depois vieram os filhos de meus amigos. Um pouco mais espertos, precoces demais, mas também me aceitavam nas brincadeiras, e nem se preocupavam com minha idade avançada. A tecnologia tirou-os da rua em troca de vídeo games e computadores, protegendo-os da violência que crescia nas ruas, onde eu a tudo vigiava.
E foi essa violência que tirou minha vida. Na madrugada fria, uns sujeitos estranhos tentaram entrar na casa de um dos meus meninos, e eu não me contive. Protegido pelas sombras da noite, cheguei bem perto e avancei sobre o maior deles, atingindo-o nas pernas. Luta sangrenta, senti um chute na cabeça, outro nas costelas, minha perna partiu-se em dois. Meu último olhar neste mundo ainda teve tempo de vê-los correndo, praguejando, pois a luz da casa ascendeu-se e a polícia estava a caminho.
Apareci no jornal. A manchete dizia que um cachorro de rua impediu um assalto na Zona Norte de São Paulo. Missão cumprida. Vinte anos de idade, 140 anos equivalentes, e terminei como um herói. Até enterro tive. Quer melhor?
Marcos Claudino tem muitos amigos cachorros. Homenagem ao Duque, o vira-latas mais simpático que existiu, que morava na Rua Yamato, Vila Maria, São Paulo, Capital.
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