CLARA
“Seu coração é um barco de velas içadas, nunca traçou o destino das embarcações…” – Ivan Lins.
A cidade era pequena. Pequena a ponto de cada habitante conhecer um ao outro. Pequena a ponto de cada habitante conhecer os ancestrais dos demais. A cidade era pequena.
Clara via o tempo passar, pela janela da biblioteca. Graças a esse trabalho, conhecera boa parte da literatura mundial. Autores nacionais e internacionais. Filosofia, política, comportamento, sociologia. O dia todo, livros. Livros a guardar, livros a entregar, fichas a preencher, sempre as mesmas, sempre as mesmas pessoas. Os mesmos que retiravam os livros, os mesmos que renovavam suas fichas, os mesmos livros…
A alegria de Clara era quando chegavam novos "velhos" livros. Mais a aprender, mais a estudar. Formou-se médica, socióloga, política, pós graduou-se em romances inesquecíveis.
Mas, com quem compartilhar todo esse conhecimento? Os sócios da biblioteca não conversavam. Professores e aposentados, carrancudos e sérios, não a encorajavam.
Todos os dias, às 20:00 hs ela apagava as luzes, e, acompanhada do último exemplar de qualquer coisa, ia para casa. Olhava a praça, sempre igual, sempre sem açúcar ou sal… Até os pombos eram sisudos, mal humorados. E Clara suspirava de melancolia. Imaginava um mundo só contido nos livros. Imaginava o mar de Jac Costeau, imaginava as tantas mil léguas de Verne. Imaginava o índio Peri a declarar-lhe amores eternos… E suspirava, ao ver o mundo sem graça à sua volta.
Durante toda a sua vida, Clara conhecera mais do que qualquer ser humano poderia imaginar. Durante toda sua existência, Clara acumulou conhecimentos inimagináveis, aventuras irreais, e até tantas reais. Durante tantos anos, Clara viveu nos livros, tudo que o ser humano fez, inventou, viveu em plenitude.
Clara morreu sozinha em sua casa, levando consigo todo o conhecimento do mundo, mas sem sentir qualquer mágoa, qualquer desamor, qualquer desgosto, pois nunca os vivera em realidade…
Coitada da Clara…
Marcos Claudino, 37 anos, profissional de RH. Texto escrito em fevereiro/2004.
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