Simplicíssimo

O Puto

 

São Paulo, 09 de agosto de 2006.

O PUTO

Já fui mais bela. Isso foi antes, bem antes.

Ainda chamo a atenção. Tenho um diferencial, nem sei. Eles ainda me procuram. Parada ali, na esquina da Gusmões, humilhando às demais com minhas pernas grossas, meu cabelo liso, negro, cumprido, esvoaçante, minha pele morena.

Algumas manchas já aparecem. O rosto mais magro. Nada que a maquiagem e a noite, essa amiga sempre fiel, onde todos os gatos e gatas são pardos, graças aos céus, não possa fazer disfarçar.

Papai ajudou-me em minha escolha. Minto, ele foi fundamental. As aventuras no terreno do fundo de nossa casa, supostamente para apanhar lenha, eu com meus tenros seis, sete anos, e um mundo abriu-se. Quer dizer, eu me abri, literalmente. Na primeira vez doeu. Na segunda também, como em todas as demais. Papai tinha boa intensão, mas não sabia fazer. Os docinhos, balas e roupinhas novas valiam o sacrifício. Pois alguns anos depois, os amiguinhos da escola já tinham mais jeito, mais carinho, mais amor…

Não fui ao enterro do papai, nem chorei, nem senti. Meu primeiro amante expulsou-me de casa aos treze, numa crise de ciúmes ao flagrar-me debaixo de um tio distante, na sala, à tarde.

Mamãe sempre me entendeu. Essa sim, pelo menos enquanto esteve em casa, antes de fugir com o caminhoneiro que cheirava a cachaça e vinagre, deu-me um pedaço de carinho, não sei de onde arrancado, naquele corpo judiado pelas humilhações e surras de papai…

Frio. Meu olhar, como sempre, não tem brilho nenhum. Prefiro dar, mas a maioria vem aqui e pede que eu coma… Difícil. Chegam dando uma de machos, fazem galanteios pensando que eu darei desconto, doce ilusão. Ao chegar ao quarto, transformam-se em caricaturas de donzelas, bandalhos humanos contradizentes com suas respeitosas vidas e famílias, abrindo-se ao suposto exame de toque, e, pior, pedem e pagam para eu não usar luvas nos membros. Faço. Vida dura, membro mole. Uma lembrança do Tião, aquele deus grego do nordeste, levanta o astral, e a coisa sai e entra, até satisfazer o garnisé macho.

Dois programas e está garantida a refeição do dia seguinte, a paga do Mascote, meu protetor, o aluguel do muquifo, umas peças de roupas no saldão. Três é luxo, mas eu topo. Topo porque terei que parar em breve. O coquetel a cada dia disfarça menos, desnudando-me aos clientes, levando o boato ao longe, desviando meus honrados pais de família a outras “meninas” melhor disfarçadas.

Guardo um dinheirinho para comprar minha fantasia pro ano que vem. O Jorginho prometeu um lugar de destaque, meu último ou único sonho. Depois o nada, o mesmo de onde eu vim, de onde eu vivo, no que eu entendo por viver…

Marcos Claudino, ciclista noturno, admirador de Marcelino Freire, óbvio…

 

Marcos Claudino

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