Chegou tarde em casa, pra variar. Encontrou a mulher dormindo tranqüilamente com o jardineiro. Não quis incomodá-los, ajeitou-se no sofá da sala e descansou. Acordou com o rádio do quarto da filha ensurdecendo a vizinhança com o funk da Taty Kebrabarraco. Sem dizer uma palavra, dirigiu-se ao toalete. Barba feita, passou uma camisa na lavanderia, ajeitou a gravata, tomou o café de ontem sozinho, e foi trabalhar.
São Paulo, 06 de dezembro de 2005.
O SILÊNCIO DOS INOCENTES
Chegou tarde em casa, pra variar. Encontrou a mulher dormindo tranqüilamente com o jardineiro. Não quis incomodá-los, ajeitou-se no sofá da sala e descansou. Acordou com o rádio do quarto da filha ensurdecendo a vizinhança com o funk da Taty Kebrabarraco. Sem dizer uma palavra, dirigiu-se ao toalete. Barba feita, passou uma camisa na lavanderia, ajeitou a gravata, tomou o café de ontem sozinho, e foi trabalhar.
Era seu aniversário, mas nem mesmo ele lembrou-se. Quarenta e cinco anos vividos, vinte e três deles nos sagrados laços do matrimônio. A filha cobrava por e-mail a mesada atrasada, tinha que comprar uma mini saia nova, pois a última havia manchado no baile funk, parecia leite, ou algo parecido…
O chefe entrou na sala esbravejando, pois as informações do relatório não demonstravam aumento nas vendas, e ele era o culpado pela negativa do empréstimo aos acionistas. Refez os dados, inventando progressões irreais, e passou para a secretária, que falava ao telefone com o namorado no Sudão.
No almoço os colegas falavam de futebol, de mulheres gostosas, das esposas insuportáveis, e dos filhos semimarginais. Ele apenas alimentava-se, sem sentir o sabor de nada. No retorno, passou no banco para transferir a mesada da filha, sacou todo o dinheiro que tinha e enfiou nos bolsos do paletó. Não retornou ao trabalho.
Dez anos se passaram. Num barraco apertado vivem um ex-jardineiro, uma senhora despenteada, uma jovem de menos de trinta anos com uma criança no colo e outra na barriga, fora a que fugiu. Assistem no Globo Repórter uma reportagem sobre as belezas de Fernando de Noronha. Num dos blocos, relata a rotina de uma família, onde o homem largou tudo na cidade grande, casou-se com uma nativa, e hoje vive numa palhoça, pesca e planta sua alimentação, anda descalço, não faz a barba, e tem duas crianças lindas e saudáveis a alegrar seus dias…
– Eu hein… Deus me livre de uma vida dessas…
– Tem razão, mãe, essas crianças devem ser cheias de vermes…
– Imagina, sem esgoto, sem hospital…
– Ah, mãe, isso a gente também não tem aqui…
– Vamo calar essa boca as duas vagabundas!! Mulher, traz mais uma pinga e deixa de falar bobagem…
– Ele me lembra um pouco o papai…
– Que é isso, menina. Corado daquele jeito, queimado de sol? Nem de longe…
Além do mais, aquele traste não sobreviveria uma semana sem mim… Idiota…
– Tem razão, mãe… Juninho, pára de comer terra, moleque idiota…
Marcos Claudino
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