PARTE II – A aventura transatlântica da reconquista de Angola.
A RESPOSTA PORTUGUESA
Tendo perdido muitas de suas fontes de rendas ultramarinas para os holandeses, estando em constante ameaça de guerra com a coroa espanhola e envolvidos até o pescoço em uma guerra não declarada contra os holandeses, Portugal se encontrava em uma situação nada confortável. Economicamente arruinados, não tinham navios de guerra em número suficiente para montar uma frota, não tinham, sequer, pilotos experientes e gente especializada para seguir nesta expedição. Ao falar de uma armada que a coroa portuguesa estava preparando para defender a Bahia, Boxer ilustra bem esta situação. “a intenção era mandar mais de trinta navios, dos maiores, mas não foi possível encontrar para isso quantidade suficiente de homens e dinheiro, verificando-se que só se poderia dispor da metade do referido número[1]”. Foi justamente neste cenário desfavorável que entrou em cena o famoso Padre Antônio Vieira.
Padre Antônio Vieira desempenhou papel importante não só na diplomacia, ao tentar acordos de paz entre Portugal e Holanda, mas também atuando no campo estratégico da defesa de Brasil e Angola. Muito embora sua opinião fosse a de que Portugal devesse celebrar um acordo com os holandeses para reaver as praças do Brasil e de Angola, foi ele quem conseguiu levantar a soma de 300.000 cruzados para preparar a armada que partiria em defesa da Bahia. Em uma de suas cartas chegou mesmo a dizer “pois eu irei buscar com minha roupeta remendada o que não conseguem os ministros de Portugal”[2]. Para tanto, recorreu a um mercador criptojudeu (cristão-novo) chamado Duarte da Silva, dizendo-lhe que “el rei carecia de um empréstimo daquela quantia a serem reembolsados por uma taxa sobre o açúcar[3]”. Em dois dias recebeu resposta positiva de Duarte da Silva, que se associara a outro mercador para emprestar o dinheiro à coroa. Posteriormente, ambos seriam perseguidos pelos tribunais do Santo Ofício[4].
Em 1647, após ser nomeado capitão-geral e governador de Angola, Salvador Correia de Sá, fidalgo português e também governador da capitania do Rio de Janeiro, começa a preparar sua frota às margens do Tejo. Com o objetivo de despistar os holandeses e manter estáveis as relações de aparente paz entre Portugal e Holanda, sua missão oficial era a de criar um porto no litoral de Angola, com uma fortaleza na enseada de Quicombo, donde se poderiam traficar escravos. Ao mesmo tempo, os holandeses também preparavam em seus territórios uma frota muito mais poderosa, composta por cinqüenta e três navios e 6000 homens, liderados pelo experiente almirante de guerra Witte With. Estava lançada, assim, a sorte de Brasil e Angola. Se a frota holandesa chegasse ao Brasil antes da frota de Salvador de Sá, ambas colônias estariam irremediavelmente perdidas. Dessa forma, a sorte seria decidida a favor de quem atingisse primeiro as costas do Brasil.
Como é de se imaginar, foi Salvador de Sá quem conseguiu mobilizar primeiro sua armada e deixar a Europa antes do rigoroso inverno de 1647. Tendo se atrasado na mobilização dos armamentos, os holandeses permitiram a chegada do inverno, o que impediu a saída da frota de With até fins de dezembro. A urgência de enviar tropas ao Brasil e Angola era tão premente que, mesmo com o rigoroso inverno, os holandeses acabaram se lançando ao mar no dia 26 de dezembro, o que resultou em uma verdadeira catástrofe para eles. Durante a travessia, muitos homens foram perdidos em razão das violentas tormentas. Um dos principais navios de guerra da frota fora perdido com toda sua tripulação. Os navios que não naufragaram ou desapareceram no mar, refugiaram-se nos portos europeus antes de seguir viagem ao Brasil, o que acabou causando a morte de muitos homens pelo frio, umidade e falta de provisões. Somente em fins de março que chegaram ao Brasil alguns navios remanescentes da tropa de With, tendo os últimos chegado somente em junho[5].
PREPARANDO A ARMADA NO RIO DE JANEIRO
Em janeiro de 1648, assim que Salvador de Sá chegou ao Rio de Janeiro, cinco galeões da armada real que haviam servido na proteção da Bahia, o esperavam no porto. Junto com os navios, estava também uma carta do governador geral do Brasil, reforçando a necessidade urgente da partida de Salvador antes que os holandeses soubessem dessa expedição e enviassem uma esquadra de Pernambuco para impedi-la. Mesmo com as notícias vindas da Bahia, Salvador demoraria ainda quatro meses para que pudesse angariar todas as provisões, recrutar os homens necessários e levantar os fundos que custeariam a expedição de reconquista de Angola.
Tendo partido de Lisboa já com “800 infantes[6]”, Salvador iniciou a recrutar os homens para sua esquadra. Obteve melhor êxito nas praças do Rio de Janeiro, talvez pelos senhores de engenho ali estarem sofrendo maior carência de escravos do que em São Paulo. Os paulistas pouco se interessaram na expedição, desapontando muito a Salvador de Sá, pois Antônio Vieira havia recomendado “ os paulistas como os melhores combatentes existentes no Brasil àquela época[7]”.
Salvador também recorreu ao povo do Rio de Janeiro para angariar os fundos de sua expedição. “O povo do Rio de Janeiro (…) recebeu bem a proposta e logo levantou-se um donativo de 55.000 cruzados”[8]. Com esse dinheiro, Salvador fretou mais seis navios e comprou, às suas próprias custas, outros quatro, compondo finalmente a esquadra com quinze navios e 1400 homens.
Os holandeses, por sua vez, já tinham a informação de que Salvador de Sá estava preparando uma armada para enviar a Angola, tanto que, em fevereiro de 1648, despacham um navio com provisões e reforço de 135 homens para proteger Luanda. Em maio, o comandante With, que a esta altura já se encontrava com boa parte de sua frota em Pernambuco, soubera por intermédio de prisioneiros que a esquadra de Salvador já havia partido para Angola. Ao receber esta notícia, With avisou imediatamente ao conselho administrativo no Recife, sugerindo que o enviassem em perseguição a Salvador. Todavia, temendo deixar Recife desguarnecido à frota do conde de Villa-Pouca ancorada na Bahia, o conselho decide não mandá-lo atrás de Salvador, acreditando que este não seria capaz de mover um ataque organizado a Luanda por “ele não se tratar de um soldado”.
Preparada a frota e com provisões para seis meses, Salvador de Sá se lança ao mar em 12 de maio de 1648, atingindo a costa africana exatos dois meses depois da partida, no dia 12 de julho, chegando com apenas onze dos quinze navios que haviam partido do Rio de Janeiro[9].
ANTES DOS HOLANDESES, UM TSUNAMI
Poucos dias após terem chegado a África e às vésperas do desembarque em Luanda, os portugueses ainda sofreriam um grande revés em sua expedição. Ao entardecer do dia 1º de agosto eles fizeram uma breve parada em Quicombo para se abastecerem de água e lenha. No momento em que baixavam as âncoras, foram surpreendidos por um “violento maremoto” que impingiu duras perdas aos portugueses como o naufrágio do galeão São Luís, que era o melhor navio da armada, além dos “mais de trezentos soldados mortos, entre eles o almirante da armada[10]”. Por muito pouco as ondas não põem toda a expedição à perder ao quase naufragar a nau capitânia[11]. Robert Southey descreve bem a tragédia de Quicombo, sendo sua descrição muito semelhante aos relatos dos sobreviventes das Tsunamis que afligiram o sudeste asiático em dezembro de 2004[12].
A RECONQUISTA DE LUANDA E DA ILHA DE SÃO TOMÉ
Apesar da tragédia, Salvador de Sá decide continuar a expedição de reconquista e parte definitivamente para a tomada de Luanda, chegando à baía da cidade aos 12 de agosto de 1648. No porto, dois navios faziam a guarda da cidade, inclusive aquele que havia sido enviado como reforço em fevereiro. Ao avistarem a chegada da frota, partiram em direção desta para lhes reconhecerem a nacionalidade. Ao descobrir se tratar da frota de Salvador de Sá, bateram em retirada deixando a defesa de Luanda desfalcada em 50 soldados. Tal como os holandeses haviam contado com a providência na tomada de Luanda sete anos antes, ao aprisionar o Jesus María José, Salvador também foi agraciado pela sorte ao aprisionar dois pescadores negros que lhes dariam todas as notícias do que se passava em terra. Soube por intermédio destes que a defesa de Luanda contava apenas com 250 homens que estavam encerrados nos fortes do Morro e da Guia. Souberam também que o sargento-mor, Symon Pieterszoon, responsável pela guarda de Luanda, estava no interior combatendo o último foco de resistência portuguesa, em Massangano. Pieterszoon tinha uma força composta por 225 holandeses, reforçados por milhares nativos da tribo dos Jagas da Rainha Ginga. Estes atacariam os portugueses por terra tão logo soubessem da chegada de Salvador em Luanda.
Tendo recebido todas essas informações, Salvador percebeu que teria que agir rapidamente. Assim, no dia seguinte, atracou no porto de Luanda e enviou três emissários incumbidos de conseguir uma rendição pacífica daquela praça. Os holandeses, desprotegidos, pediram oito dias para tomarem uma decisão, mas os portugueses ofereceram somente dois. Passado o prazo, nem esperaram resposta dos holandeses, no dia 15 de agosto desembarcaram no mesmo local onde Houtbeen havia desembarcado suas tropas sete anos antes, onde os canhões não conseguiam alcançar. Com uma força de 1000 homens, Salvador ordena que sua tropa marche à cidade que, estando praticamente desguarnecida, ofereceu pouca resistência aos portugueses. A verdadeira luta por Luanda estava reservada aos fortes do Morro e da Guia, onde os holandeses haviam se encerrado quando da chegada de Salvador de Sá.
Foi na madrugada de 17 para 18 de agosto que os portugueses, com três colunas de soldados, iniciaram o ataque aos fortes de Luanda. Até o raiar do dia os portugueses avançavam bravamente sobre os fortes, mesmo sob o alto custo de vidas humanas. Ao perceber a ineficácia do combate, Salvador fez a chamada geral para bater em retirada e organizar a tropa. Tendo perdido quase cento e cinqüenta homens, dos quatrocentos alocados para a batalha, percebe que a situação começa a se complicar para os portugueses. As baixas holandesas, por sua vez, foram insignificantes, totalizando três mortos e alguns poucos feridos. As piores perdas para os holandeses foram os vários canhões e as carretas que os transportavam, que os portugueses havia logrado explodir durante o combate.
Poucas horas após o malogrado ataque do morro, Salvador de Sá e o restante de sua tropa vêem, com espanto, uma bandeira branca ser hasteada pelos holandeses no alto do morro. Estes enviam seus mensageiros para anunciar sua disposição de entregar os fortes de Luanda e mais as posições avançadas de Kwanza e Benguela, desde que fossem permitido fazê-lo em condições favoráveis. Nem é preciso dizer que Salvador de Sá aceitou a proposta na hora, e ainda permitiu que os holandeses estipulassem as condições da rendição[13].
No dia 21 de agosto foram assinadas por ambos os lados as condições de entrega que davam as seguintes garantias: “os holandeses evacuariam toda a colônia, levando consigo os seus pertences, obrigando-se os portugueses a fornecer navios apropriados para a viagem. (…) Os holandeses retirar-se-iam com honras militares, ao toque de tambores e com as bandeiras desfraldadas, sendo concedidos cinco dias para fazerem a completa evacuação e esperar a coluna de Pieterszoon, que vinha por terra. Durante todo esse tempo, Salvador devia evitar que fossem alvo de insultos ou ofensas da parte dos vencedores. (…) Concedeu-se ao sargento-mor (Pieterszoon) a alternativa de aceitar ou não as condições da rendição; mas tanto Ouman como Lens (comandantes holandeses que assinaram a rendição) se comprometeram a não ajudá-lo contra os portugueses Aos soldados católico-romanos, na sua maioria franceses e alemães, e mais ou menos em número de cem, que estavam a serviço dos holandeses, deu-se a permissão de, se assim preferissem, passarem a servir aos portugueses.[14]”.
Todas as condições estipuladas na rendição foram cumpridas à risca e os holandeses saíram de Luanda no dia 24 de agosto de 1648, exatamente sete anos após o desembarque dos holandeses naquela mesma cidade. Ao receberem as notícias da capitulação de Luanda, os holandeses de Benguela e da Ilha de São Tomé também abandonaram estas praças por não se julgarem em segurança de manter suas posições[15]. Assim que soube da ausência dos holandeses nessas praças, Salvador de Sá ordenou a preparação de uma Nau com soldados e munições para ocupá-las de tal forma que, após ocupar Benguela e a Ilha de São Tomé, a situação de Portugal volta a ser a mesma que existia antes das invasões holandesas em 1641 com relação às colônias africanas.
Após a reconquista de Luanda, Salvador de Sá permaneceu ainda por três anos e quatro meses como governador de Angola e, como disse Pedro Calmon, “pôs ordem nessas terras rehavidas em tão admiráveis circunstâncias[16]”. A reconquista de Luanda deu muito prestígio a ele tanto em Portugal quanto no Brasil, pois restaurou o monopólio português do trafico de escravos que, por sua vez, abastecia de negros os engenhos dos senhores do açúcar no Brasil.
CONCLUSÃO
A reconquista de Luanda não significou apenas a reposição de uma feitoria de tráfico de escravos a Portugal, mas muito mais que isso. Em primeiro lugar, deu ânimo, forças, fundos e argumentos políticos para que os portugueses movessem outras batalhas contra os holandeses por suas possessões ultramarinas, como foi o caso da própria reconquista de Pernambuco, em 1654. Em uma segunda análise, vemos que ela também garantiu a própria existência de Brasil e Angola como colônias portuguesas, uma vez que, sem o acesso aos escravos de Angola, Portugal veria o negócio do açúcar inviabilizado no Brasil e, sem o dinheiro do açúcar e dos escravos, não conseguiria defender nem o Brasil do cancro holandês instalado no nordeste, nem o restante de suas posses ultramarinas das constantes ameaças de outras potências européias. Arriscaria a dizer que, quiçá, não conseguiram defender sequer seu próprio território de possíveis invasões espanholas.
Assim, vemos que essa frota luso-brasileira teve uma importância vital para a própria existência de Portugal não só como metrópole, mas também, como nação independente no cenário europeu do século XVII. Sem ela, talvez o destino do Brasil teria sido outro completamente distinto, e este mesmo artigo que vocês lêem agora, talvez não tivesse sido escrito na língua de Camões, mas sim, em bom holandês.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686. São Paulo: Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, 1973.
CALDEIRA, Jorge. Viagem pela História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
CARDONEGA, Antonio de Oliveira. História geral das guerras angolanas vol.2; Lisboa: Ed. Agência Geral das Colônias, [s.d.]
NORTON, Luís. A dinastia dos Sás no Brasil (1558-1652). Lisboa: Ed. Agência Geral das Colônias, 1943
PUNTONI, Pedro. A mísera sorte. São Paulo: Ed. Hucitec, 1999
SOUTHEY, Robert. História do Brasil Vol.2. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1981.
[1] BOXER, op. cit., p.258
[2] NORTON, Luis, A Dinastia dos Sás no Brasil (1558-1562). Lisboa: Ed. Agência Geral das Colônias, 1943, p. 76
[3] SOUTHEY, Robert. História do Brasil Vol.2. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1981, p.118.
[4] NORTON, op. cit., p.70
[5] BOXER, op. cit., p.258.
[6] NORTON, op. cit., p. 88
[7] BOXER, op.cit., p.267
[8] SOUTHEY, op. cit., p.124
[9] BOXER, op.cit., p.271
[10] CARDONEGA, Antonio de Oliveira; História geral das guerras angolanas Vol.2. Lisboa: Ed. Agência Geral das Colônias, 1943, p. 5.
[11] BOXER, op. cit., p.275.
[12] SOUTHEY, op. cit., p.125
[13] BOXER, op. cit., 276, 278, 279
[14] BOXER, op. cit., 280-281.
[15] NORTON, op. cit., 107.
[16] CALMON, Pedro; História do Brasil, 2º Vol, p.238 apub. NORTON, op. cit., p. 111.
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