Filme baseado em livro de Lourenço Mutarelli, estreou dia 19/03 e traz Selton Mello como protagonista vivendo um personagem cuja função principal é dar valor a todas as coisas. Desde a bunda pela qual se apaixona, passando por algumas quinquilharias que os endividados trazem para ele comprar, chegando até mesmo a avaliar as pessoas com quem ele se relaciona. Esta é a mensagem principal do filme, refletir sobre como nós damos valor às "coisas" com as quais nos relacionamos em nossa vida.
A narração em primeira pessoa nos conduz para dentro do universo do protragonista, Lourenço, que revende artigos de segunda mão, avaliando muito mal os produtos que endividados em geral trazem para conseguir um dinheiro rápido. Uma reflexão interessante proposta pelo filme é que, ao compararmos a quantia de dinheiro que Lourenço oferece por objetos tidos socialmente como muito valiosos, como um violino stradvarius, com aqueles considerados meras bugigangas, como um olho ou uma velha perna mecânica percebemos que o valor que damos a cada coisa não está no objeto em si, mas na história ou nos valores que acreditamos que esses objetos carregam ou nos valores que nós mesmo damos a eles, mesmo que estes valores sejam inventados.
O grande problema apresentado pelo filme é que a vida profissional de Lourenço acaba influindo na maneira como ele vive, fazendo com que ele avalie também o valor das pessoas com quem se relaciona, “coisificando” (ou reificando, como preferem os filósofos), as próprias pessoas. No filme, este valor vai variando do menosprezo total à vida de alguns personagens, como um indivíduo que Lourenço manda matar; até a um valor exagerado assumido por uma bunda pela qual ele se apaixona e não mede recursos para obtê-la.
Se analisarmos como Mutarelli trata da questão da reificação das pessoas através dos valores que as mulheres assumem para o protagonista da história, veremos o quão profunda esta reflexão pode penetrar em nós mesmos. Lourenço demonstra profundo desprezo pelas mulheres com que se relaciona neste filme, quando muito, valoriza apenas uma ou outra característica individual delas. Senão vejamos:
Na primeira relação, ele está noivo e a data de seu casamento já está agendada. Lourenço desmancha o noivado alegando não gostar de sua noiva, não tendo realmente jamais se importado com ela. Nesta relação percebemos o embate paradoxal dos valores que cada personagem dá ao seu relacionamento. Se de um lado Lourenço tem a relação em péssima conta, não dando nenhum valor a sua noiva, do outro, a mulher super-valoriza a relação, chegando mesmo a desvalorizar-se e humilhar-se constantemente, buscando reconciliação à qualquer custo.
Já a segunda relação não é propriamente com uma mulher, mas sim com a bunda dela. Lourenço não quer ter relação com o todo, apenas com a bunda da funcionária de uma lanchonete onde "almoça", ou seja, a mulher assume papel de objeto meramente sexual. Do outro lado da relação, o valor que esta mulher dá para Lourenço vai mudando com o decorrer da história. No princípio ela se apaixona por ele, que lhe dedica certa atenção, coisa rara para alguém na posição dela. Porém, quando este conta que se apaixonou por sua bunda e que pagaria para tê-la, a mulher fica ofendida e se afasta de Lourenço, que não consegue concretizar seu desejo, nem mesmo pagando, o que também é raro. Porém, mais adiante no filme, a mulher põem tudo à perder e desvaloriza-se, sucumbindo ao poder do dinheiro oferecido por Lourenço por sua bunda.
A terceira mulher é uma viciada em crack que vende os objetos da família para manter seu vício. De cara percebe-se o valor que a própria mulher dá a si mesmo. Em um dado momento, não tendo mais nada a oferecer para manter seu vício, aceita uma proposta de Lourenço que, louco pela ausência da bunda, decide pagar um pequeno valor pelo corpo maltratado da viciada. O desprezo de Lourenço por esta personagem é claro e é o responsável pelas conseqüências finais do filme.
A quarta e última relação é com uma prostituta, a qual ele paga rios de dinheiro para satisfazer o vazio deixado pelo sumiço da bunda. Nesta relação é Lourenço quem se deprecia e fica totalmente desvalorizado na cena. Do outro lado da relação, a mulher volta assumir o valor meramente sexual, ainda que, senhora da situação, seu valor é a mera satisfação dos desejos de Lourenço.
Assim, analisando os diferentes valores assumidos pelas personagens no decorrer da história, somos capazes de entender a profundidade com que o autor nos propõe uma reflexão pessoal do quanto reificamos as pessoas com as quais nos relacionamos diariamente. Mais que isso, nos convida a refletir o quanto nós mesmo nos reificamos perante certas situações.
Para finalizar esta pequena análise do filme, vale a pena salientar que embora seja um filme de baixa produção, e a obra de Mutarelli tida como marginal, O Cheiro do Ralo é, sem dúvida, o melhor filme do ano. A importância das reflexões e a forma como elas são propostas neste trabalho são valiosas. Ainda mais se considerarmos este universo onde a indústria está apenas preocupada com o lucro certo e o entretenimento. Além disso, a teimosia dos envolvidos neste filme ao produzir a obra, mesmo tendo recebido diversos "não" na hora de arrecadar o dinheiro é mais do que louvável, é desejável. Por fim, outro fator extremamente atrativo é a fuga total dos clichês das atuais produções nacionais, deixando de lado o filão já bem explorado das peculiaridades do regionalismo brasileiro, de um lado, e a criminalidade das grandes cidades, do outro. Eis aí alguns dos valores de O Cheiro do Ralo
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