Simplicíssimo

Atrás do trio elétrico

Quarta-feira de cinzas seria um dia mais propício ao ocorrido, considerando que os mortos foram os protagonistas. Mas como os desígnios sobrenaturais são misteriosos e ingovernáveis, resta apenas admitir o fato como verídico – testemunhado que foi por toda a cidade.

Passava um pouco do nascer do sol quando, em pleno sábado de Carnaval, os finados todos do cemitério ergueram em perfeito sincronismo os granitos e mármores que os cobriam e saíram em comboio às ruas de paralelepípedos, entoando marchinhas de Lamartine e João de Barro. Sem bumbos, cuícas e tamborins para marcar o ritmo, eles cantavam a cappella. Acompanhando as vozes um tanto roucas, apenas o bater dos seus calçados no chão coberto de confetes e umedecido pelo orvalho.

A cena tinha lá sua semelhança com a magistralmente narrada por Erico Verissimo em seu “Incidente em Antares”, com a diferença de que, desta vez, a coisa não era obra de ficção. Estranhamente, os cadáveres exalavam o cheiro suave e fresco dos que acabam de sair do banho, a despeito de alguns deles habitarem o campo santo há mais de 150 anos. Calças vincadas em régua e esquadro, saias plissadas, sapatos brilhando, batons milimetricamente aplicados, barbas e bigodes aparados com capricho quase artístico. Assim se apresentava aquele ruidoso regimento, que pulava e saracoteava como uma galerinha de adolescentes, ainda que muitos dos foliões tivessem sido enterrados com ossos e crânios completamente destruídos por acidentes de trânsito e quedas de edifícios.

Os pândegos vivos se divertiam e comentavam uns com os outros, em tom de sarro e rindo até se arrebentar:
– Minha nossa, olha só o bloco dos mortos. Não tem pra ninguém, esse povo aí já ganhou o primeiro lugar em originalidade. Que ideia mais doida, fantasia de defunto…
– E essa aí travestida de Dona Júlia de Andrade. Incrível como ficou igualzinha à velha… ai, meu Deus, que morbidez.

A farra de Momo prosseguiu nessa levada, com mortos encoxando vivos e vivos sem saber que davam beijos de língua nos mortos. Até que alguém, um pouco menos bêbado, se deu conta:
– Ei, espera aí. Tirando os que foram viajar pra praia e fazer retiro espiritual, todo mundo que mora aqui na cidade estava na folia desde ontem, sexta-feira. E se todos continuaram aqui, emendando a sexta com o sábado, de onde vieram esses caras fantasiados de mortos? Só se for gente de outra cidade. Mas forasteiros não conheceriam tão bem os finados da terra a ponto de se vestirem e se comportarem como réplicas deles. Tem alguma coisa estranha nessa história. Ah, isso tem.

Para a suspeita virar certeza foi um pulo. E então fez-se o pânico, tão fulminante a ponto dos encarnados, sem exceção, irem desta pra melhor. De susto, de horror ou de arrependimento, já que alguns tinham acabado de praticar necrofilia sem saber. Aos poucos, os defuntos foram sepultando os então vivos nas covas que até há poucas horas ocupavam. Concluído o serviço,  seguiram todos cantando: “Atrás do trio elétrico só vai quem já morreu”…

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Marcelo Sguassabia

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