Aconteceu num sábado de quaresma. O primeiro achado das escavações foi sendo içado lentamente de sob a areia de Copacabana. O ébano dos sustenidos e bemóis ganhava a superfície refletindo o sol da manhãzinha, depois as 88 teclas de marfim e em seguida todo o piano de cauda. Na banqueta, um tanto estreita para duas pessoas, Villa lobos e Ernesto Nazareth tocavam a 4 mãos, ambos de fraque e sorrindo um para o outro. O charuto de Villa incomodou Elizeth, que passava de maiô e com o LP "Canção do Amor Demais" embaixo do braço. Aproveitava o mar enquanto não chegava a hora de brilhar no palco de uma boate da zona norte do Rio. Muito além da rebentação, e com a água já pelo pescoço, Vinícius contava os peixinhos a nadar no mar para saber se eram menos que os beijinhos que dera há pouco na boca da amada. E o guindaste abria alas puxando uma Chiquinha Gonzaga meio sem jeito e assustada, violão numa mão e arrastando Caymmi pela outra, um Dorival ranzinza a reivindicar que aquela não era a areia de Itapuã e que andara de fato morto, mas de saudade da Bahia. Uma outra prospecção trouxe dessa vez tenra e gorda coxa de frango assado. E como atrás de toda coxa de frango assado sempre vem um Dom João VI, lá estava o monarca a reboque, os dentes cravados na iguaria e ameaçando colocar a Guarda Real no encalço da Carla Camuratti, pelas supostas infâmias contra Dona Carlota Joaquina. Ao meio-dia e quinze foi a vez de Nelson Rodrigues, com as olheiras fundas do sono eterno, batucando freneticamente numa Remington descascada pela maresia os originais de "A morte como ela é". Acendeu um cigarro e, de onde estava, acenou para Vinícius, que entretido com a contagem de peixinhos deixou o autor de "Vestido de Noiva" a ver navios. E junto com as pessoas vinham coisas – mesas de telefone com pés de palito, fonógrafos da Casa Edson, sopas ainda fumegantes para os ressaqueiros do Café Nice, lampiões da Rua do Ouvidor. Mas eis que depois de um tempo o guindaste já não precisava trabalhar, pois objetos e ressuscitados eram cuspidos violentamente pela areia e ganhavam os ares como gêiseres, alguns deles à altura do Corcovado. O espetáculo maior se deu com a erupção de Carmem Miranda, do Bando da Lua e de boa parte do elenco da Rádio Nacional. Em meio a eles flanavam, como freezbes, discos de 78 rotações, bananas, abacaxis, balangandãs, batas rendadas, pulseiras de ouro e tudo o mais que baiana tem – ou tinha, no auge da sua glória.
Ao fenômeno inusitado ninguém na orla ficou indiferente, nem mesmo a estátua de bronze de Drummond. De pernas cruzadas no banco do calçadão, o poeta se virou para observar melhor o que estava acontecendo. E deu de cara com Machado em carne e osso às suas costas, as barbas cheias de areia, a olhar intrigado para a fileira de prédios da Avenida Atlântica. Invocando memórias póstumas, perguntou a Carlos:
– Por acaso o amigo sabe se o bonde para o Cosme Velho já passou?
– Se passou, lamento informar que não vi. Roubaram-me os óculos de novo.
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