Logo após marcar a ferro e fogo as duas dezenas de bois recém-chegados, Moacyr Mantovicci banhou-se, enfiou como de hábito a cara nos livros e compreendeu finalmente a diferença geográfica entre o clima semiárido das regiões setentrionais e a depressão marginal Sul-Amazônica. Em seguida pensou triunfante, estalando os dedos e exalando sabonete barato, que eram quinze os volumes sobre a mesa e que nenhum deles revelaria o que de fato levou Gutenberg à descoberta da imprensa – se o amor à evolução da humanidade ou se a solidariedade a um seu primo em segundo grau, monge copista com sérios problemas de coluna e início de catarata. Estas e outras conjecturas não contempladas pela história oficial, quando se apresentavam à sua reflexão, tomavam boa parte do seu dia e não raro avançavam pela noite, deixando-o insone a rabiscar apontamentos.
Nas raras ocasiões em que se punha a falar pelos cotovelos, reunindo seleta audiência à varanda da fazenda, mostrava que a modéstia estava a léguas do seu elenco de virtudes. Batia no peito alardeando as centenas de ideias que concebera em prol das populações desassistidas, como o sistema de pesca em mutirão e a moagem extra-rápida de milho – via aperfeiçoamentos nas rodas d’agua e na mecânica dos moinhos. Aos gritos de “Bravo, Bravo!”, seu nome era cogitado à vereança e até mesmo ao posto mais alto do Executivo Municipal, embora alguns dos vizinhos correligionários não vissem em sua estampa suficiente carisma para inflamar as massas e resultar em consagradora vitória nas urnas.
Acompanhando a notável imodéstia, era flagrante em Moacyr uma ambição avassaladora, explícita na forma como olhava para as notas de 50 e imaginava seu rosto nitidamente delineado em bico de pena no lugar do desenho da onça. Esta sim, a pretensão suprema: mais que ter dinheiro, ser dinheiro. Seria literalmente proclamar ao mundo, a todo instante, o seu valor. No afã de fama a qualquer custo, antevia detalhes fisionômicos talhados nas estátuas em bronze que se ergueriam, em cada esquina, homenageando sua pessoa.
Uma estranha herança carregava de nascença o nosso herói, esta absolutamente sui-generis: tinha estrelas gravadas em relevo na palma da mão direita, ornando a longa e bem traçada linha da vida. Além de matéria exclusiva no “Fantástico” da época, uma equipe médica da Organização Mundial de Saúde teve acesso à Santa Casa local para apurar melhor o fenômeno. Inconclusivos, os estudos foram repassados a uma junta internacional de ufólogos, que também abandonaram o caso ao cabo de três semanas. O dossiê, de 71.000 páginas datilografadas em espaço dois, foi entregue ao rabino Petrushka Schnaidermann que o vendeu como sucata ao popular “Mudinho”, coletor de recicláveis.
Paradoxal por natureza, ninguém como Moacyr Mantovicci para num dia se fartar de empadinhas de anteontem e noutro exigir lagostas gratinadas ao molho de caviar russo. Numa das ocasiões em que degustava lentamente esta segunda iguaria, pediu a palavra aos convivas, levantou-se e, passando o guardanapo de linho nos lábios, proclamou a máxima que o marcaria para a posteridade: “Senhores, é forçoso admitir que nenhum ser humano é tão humanamente falho a ponto de errar cem por cento das vezes”. Estes e outros fundamentos filosóficos dizia ele a quem se aproximasse, estando ou não desencapando rolos e mais rolos de fio de cobre – para ele um misto de passatempo e ganha-pão.
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