Simplicíssimo

A pedra preciosa

(Notícia veiculada no jornal Folha de São Paulo, domingo, dia 02/03/2008 – a matéria é real; o parlamentar – como sempre – foi colocado como ficção)

Um absurdo o que está ocorrendo na cidade de Ametista do Sul, no RS. Quase 30 % dos habitantes, do total de 8000, entre adultos – e… até crianças!! – estão garimpando a pedra ametista, um minério originário da região. O problema grave está na doença a que as pessoas estão expostas, a silicose, uma doença pulmonar. Essa moléstia é uma das mais antigas doenças ocupacionais conhecidas; é provocada pelo acúmulo de pó de sílica nos pulmões e que, durante anos, vão formando cicatrizes, que ficam permanentes. Ao menos 70 pessoas aguardam transplantes de pulmões… isto mesmo, transplantes!! é a única saída pois a doença é incurável.

Então, continuando a história – que agora, infelizmente é ficção – um parlamentar fica sabendo da história, rapidamente chama seus assessores e marca uma viagem para o sul.

– Cancele toda minha agenda – pede à secretária – tenho um assunto que não pode ser adiado… envolve adultos, doenças… e, principalmente (debocha) criança!!

– Por isso trabalho para o senhor, nobre deputado, o senhor se preocupa com pessoas, ou melhor, com o próximo. Quisera outros parlamentares tivessem a mesma nobreza!

– Ah, só peço uma coisa, nobre e (passeia de cima a baixo para a moça com olhar malicioso) doce secretária: informe todos os órgãos de imprensa falada, televisada, ouvida, escrita, selecionada, processada e por que não dizer, interessada !! sobre minha nobre missão (passa a mão nos cabelos dela e sai)

Já no jatinho ele discute com os assessores – Eu acho um absurdo o que está acontecendo… não acredito, nobres assessores!! É lamentável isso… por falar no assunto, já tomaram as providências que lhes pedi?? não acredito, crianças trabalhando!! (que são o meu alvo predileto; ainda bem que fiquei sabendo primeiro que os demais parlamentares)

– Sim senhor, deputado. Tomamos todas as providências necessárias.

– Pois muito bem, gosto de assessores assim, espertos, que têm visão lá adiante. Bom… parece que estamos chegando!!

O jatinho aterrisa e descem o deputado, todo imponente, junto dos assessores, sendo recebidos pelas autoridades locais.

– Quero ver essa vergonha de perto, senhores, isso é um absurdo… e fiquei sabendo que crianças estão trabalhando nisso!!?? Absurdo!

– Já estamos chegando, deputado – disse um vereador da cidade – ainda bem que o nobre deputado está interessado na causa.

– Interessadíssimo!! (baixo para o vereador, que,claro, é do mesmo partido) nas próximas eleições que estão próximas. Aliás, isto veio calhar no momento exato!!

– E… (fala baixo ao parlamentar) o nobre deputado, como sempre, não vai esquecer de mim, não é mesmo, na próxima eleição para a vereança?

– Que isso, nobre vereador, o vosso nome é (enfatiza) o primeiro que está na minha agenda no bolso (que esqueci em Brasília).

-Ah, chegamos ao local, nobre deputado!!

Os trabalhadores já os aguardavam entusiasmados, pois, finalmente alguém se preocupara com eles. Alguém finalmente iria ver as condições precárias que eles estavam passando.

– Nobres (infames) trabalhadores, nobres (paupérrimos) cidadãos que tanto contribuem para o enriquecimento (do meu bolso) do nosso país…- (os ouvintes aplaudem (os assessores e vereadores, que fique bem claro!)); ele "modestamente" diz que é obrigação dele – Estou aqui hoje (na verdade eu queria estar numa piscina tomando um sol !!! ou no parlamento tirando uma soneca!!)) pois fiquei sabendo que de hoje em diante tomaremos as medidas necessárias para que isso se acabe de vez. Um trabalhador, senhores que ter seu serviço digno, com toda segurança que lhes é devida… – chama os assessores – tragam o material, nobres assessores.

Os assessores vão até a van e trazem várias sacolas.

– Eu faço questão de entregar pessoalmente a cada um, dignos trabalhadores, estas luvas e botas (im)permeabilizantes para proteção das mãos e braços, bem como estas roupas; estes óculos para a proteger os olhos; uma máscara de proteção que usarão para o rosto, nariz e a boca contra os gases nocivos que são danosos ao organismo. (Enfatiza) Que fique bem claro, nobres trabalhadores… esse equipamentos eu fui comprar pessoalmente (claro, para superfaturar o preço e levar o meu) nos Estados Unidos (comprei numa lojinha em Brasília) e que foram rigorosamente testadas e aprovadas nos mais modernos institutos de "Ma.. Mas.. ssa… Massachutes" nos EUA. Ah, e como nenhum nobre (saco vazio pára em pé) trabalhador pode passar fome trago aqui – faz gestos aos assessores para trazerem as cestas básicas – o alimento necessário (até as próximas eleições para que se lembrem de mim ). Todos (os vereadores – do mesmo partido – e assessores, e depois, para não ficar sem graça, os trabalhadores, aplaudem o "gesto nobre" do nobre parlamentar, que, com o gesto característico, "modesto" já conhecido dos braços de todo político, ele se despede (graças a Deus, daquele lugar).

Agora, voltando à realidade, que é nua e crua, a verdadeira pedra preciosa, é o ser humano, pois a vida não tem preço. Frase esta que estamos cansados de saber e falar mas que infelizmente só têm sentido pra nós cidadãos comuns, pobres, assalariados. A educação da honestidade, nobreza etc no sendito profundo da palavra tem que começar em casa, principalmente no primeiro ano na escola casa. Só assim mudaremos uma cultura que vem já do Império.

Afonso José Santana

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