Simplicíssimo

Feche os olhos

Eduardo na Vitalis
Eduardo Sabbi com a amiga Vanessa na Festa de Natal da Vitalis em 2006

Feche os olhos. Agora, faça comigo um exercício de imaginação: imagine um de seus melhores amigos sendo atropelado violentamente por um ônibus em alta velocidade e sendo jogado em cima de um poste. Imagine seu amigo, corpo inerte, jogado no solo, todo ensangüentado. Imagine ele recebendo os primeiros socorros por um radialista e um estagiário da área de saúde que por coincidência estava por lá. Imagine o SAMU sendo chamado – para o médico, técnico de enfermagem e motorista é somente mais um trabalho no dia cheio. Imagine a dificuldade em encontrar um familiar em um celular estraçalhado. Uma carteira de identidade revela o sobrenome da vítima: o sobrenome de seu amigo. O radialista procura na lista telefônica enquanto a ambulância remove o seu amigo, gravemente ferido, totalmente inconsciente. Um familiar de seu amigo recebe um telefonema, informando que seu amigo foi atropelado e está sendo levado ao Hospital de Pronto Socorro. O familiar do seu amigo é um tio, e prontamente telefona para o primo do seu amigo ir correndo para o hospital, enquanto ele faz o mesmo e deixa a esposa encarregada de contatar o pai do seu amigo, que mora em outra cidade, distante dali 130 quilômetros. Quem atende o telefone é o irmão. A esposa do tio pede que o telefone seja passado ao pai. Ela passa a notícia, dentro das poucas informações que tem. Pede que ele venha com urgência pois o filho sofreu um acidente. Era hora do almoço, havia recém sentado à mesa. Um nó embrulha o estômago. Sente que não tem condições de dirigir, mas precisa ir ao encontro do filho. O chão parece ter desaparecido. Um novo telefonema: mais uma pessoa informando do ocorrido com seu filho. Senta novamente na mesa. A comida não entra. Um novo telefonema traz a notícia repetidamente. A esposa não entende nada. Novo telefonema, desta vez é o tio ligando do hospital, trazendo informações sobre o quadro. É grave. É gravíssimo. Choque. Perda de consciência. Hemorragia interna. Traumatismo craniano com hemorragia intra-craniana. Pensou ter ouvido falar a palavra coma. A cabeça começa a girar. Precisa se levantar. Precisa ir em direção ao filho. A esposa não pode saber. Ela não vai agüentar. “Filho, me leva até a Rodoviária. Preciso ir assinar uns papéis urgentes para teu irmão”. Despede-se da esposa e é levado pelo filho até a Rodoviária, onde lhe conta a verdade. Pede que não diga nada para a mãe até que tenha certeza da real situação. Chega ao hospital. A verdade é amarga. Ninguém podia lhe antecipar com palavras a cena que iria ver. O filho, com um tubo na traquéia, sendo ventilado por uma máquina e ligado a diversas outras máquinas e monitores. O caminho até aí já havia sido difícil: uma hemorragia interna causada por ruptura do baço obrigou a retirada com urgência do mesmo. A hemorragia intra-craniana formou um coágulo que teve que ser removido com urgência. Houve perfuração de ambos pulmões, que tiveram que ser drenados. A forte energia cinética do acidente provavelmente irá deixar seqüelas. A mais temida delas já aparece no segundo dia de evolução. Tem nome de mulher: SARA. A temida Síndrome da Angústia Respiratória Aguda (ou do Adulto) havia se instalado, a princípio timidamente mas agora com toda força. Equipamentos de ventilação mecânica funcionando no máximo, os alvéolos do jovem pulmão de alguém que nunca colocou um cigarro na boca quase explodindo de tanta pressão, obrigatória para tentar vencer a resistência imposta por essa gravíssima forma de inflamação pulmonar generalizada, que impede a oxigenação do sangue. Nessa hora, você está de olhos abertos. Viajou 260 quilômetros da cidade onde mora e está indo em direção ao hospital onde mora seu amigo. Um hospital que você conhece com a palma da mão, pois realizou vários meses de estágio voluntário e obrigatório lá durante sua faculdade de Medicina. Você não sabe ao certo o que lhe espera. À medida que vai se aproximando da cidade, seu coração vai ficando apertado. Quando se aproxima da curva que levará à grande avenida Oswaldo Aranha, onde se encontra o Hospital de Pronto Socorro, começa a ter uma leve tontura. Logo depois, já na Oswaldo Aranha, enfrentando o trânsito de fim de tarde de Porto Alegre, começa a sentir tenesmo, aquela sensação de que precisa evacuar e, ao mesmo tempo, uma dor de barriga começa a lhe incomodar. Você pensa em desistir de ir ao hospital. Acredita estar iniciando um processo de transtorno conversivo histérico. Você aperta os punhos no volante do carro e diz pra si mesmo: deixe de ser bobo. Vá em frente! Seu amigo precisa de você. E lá está você, estacionando o carro perto do hospital e se dirigindo até a UTI. Na entrada, encontra-se com o primo do seu amigo, seu pai e mãe, aflitos. Dá-lhes um forte abraço e profere palavras de esperança, mesmo ainda incerto do que seu julgamento irá dizer logo mais. ~E chegada a hora de subir. Você sobe acompanhando os pais do seu amigo. Somente uma pessoa pode entrar por vez. Os pais de seu amigo lhe deixam entrar primeiro. Você entra e vai em direção ao leito em que seu amigo se encontra. Lhe disseram que é o leito seis, no fim da sala. Você olha e, de longe, parece que se enganaram. Aquele indivíduo edemaciado, com a cabeça raspada não parece ser seu amigo. Você dá mais um passo e percebe que o engano era seu. Aquele é, sem dúvida, seu amigo. Aquele amigo que há menos de uma semana lhe emprestou um livro do Eduardo Galeano. Aquele amigo que até na outra noite estava lhe ajudando a debulhar alguns códigos de php no site que vocês faziam juntos. Aquele amigo que algum tempo atrás tinha lhe abraçado fortemente, em êxtase, quando seu time foi campeão do mundo. Aquele amigo que você levou pela primeira vez ao restaurante Marcellu’s, para comer um delicioso rodízio de filés e que agora, ironicamente, havia sido atropelado justamente saindo deste mesmo restaurante, após um almoço que tinha se tornado habitual naquele lugar. Você teima em não chorar, pois quer passar uma voz tranqüila a seu amigo que, mesmo inconsciente, você acredita possa lhe ouvir. Você avisa que chegou, que os pais dele entrarão logo a seguir. Segura em seu braço edemaciado, olha para seu rosto deformado pelo líquido, observa seus hematomas e a cicatriz da craniectomia na região occipital e lhe diz, ao ouvido, que quer que ele volte logo, pois está precisando de ajuda com o site. Diz que o livro que ele lhe emprestou é realmente ótimo, e pede para ficar com ele por mais alguns dias, se ele não se incomodar. Diz, com a voz embargada, que ele precisa ser forte, que existem uma centena de pessoas que precisam dele, como por exemplo os idosos da Clínica Geriátrica Vitalis, da qual ele é mentor, fundador, proprietário, psiquiatra e na qual tudo funciona sob sua batuta. Você diz que queria ficar mais tempo, mas não quer ser egoísta e quer deixar os pais dele entrarem, pois ambos estão apreensivos. Você passa a mão na cabeça raspada do seu amigo, fica acariciando com a mão e com os olhos. Manda toda energia positiva que é possível emanar de um só corpo e reza para que ela seja suficiente para tirar seu amigo de lá. Você não sabe se Deus existe, mas pede que, se ele existir e for tudo isso que dizem dele, que ele apareça e tome uma atitude. Agora você já pode abrir os olhos, mas a verdade é uma só: nada disso é fruto da imaginação. Você é Rafael Reinehr, e seu amigo Eduardo Sabbi está precisando muito de toda força positiva que existe nesse mundo para melhorar e voltar a viver plenamente, entre seus amigos e familiares. Você é médico, mas nessa hora reconhece sua limitação, sua impotência frente às grandes forças da Natureza. Você se sente pequeno, minúsculo mesmo neste grande Universo. Você novamente percebe o papel da morte que caminha lado a lado com a vida. Você sabe que, de hoje em diante, sua vida nunca mais será a mesma.

Rafael Reinehr, em 26/04/2007

Rafael Reinehr

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