(O texto aqui comentado foi publicado na Folha de São Paulo no dia 13 de dezembro de 2003 e é uma tradução de uma palestra proferida por Umberto Eco na Biblioteca de Alexandria, publicada originalmente no jornal egípcio Al Ahram.)
Cena: século XV, após a invenção da imprensa. Livro: "Nossa Senhora de Paris", de Victor Hugo. O padre Claude Frollo olha de forma tristonha para as torres de sua catedral. A catedral medieval na época era o referencial "destinado a transmitir às pessoas tudo o que era indispensável para a sua vida cotidiana, assim como para a sua salvação eterna"
Na cena descrita, Frollo tem sobre sua mesa um livro impresso e sussurra: "Ceci tuera cela" – isto vai matar aquilo ou "o livro vai matar a catedral", "o alfabeto vai matar as imagens". Isso significaria que o livro desviaria as pessoas de seus valores mais importantes, incentivaria informação supérflua, a livre interpretação das Escrituras sagradas, uma curiosidade insana.
Pulando para 1960, vemos Marshall McLuhan escrevendo "A Galáxia de Gutemberg", afirmando que a maneira linear de pensar representada pela invenção da imprensa estava prestes a ser substituída por uma forma "mais global de percepção e compreensão, por meio de imagens de TV ou outros tipos de aparelho eletrônico"!
Durante sua palestra Eco pretende responder a duas perguntas:
1. Os livros desaparecerão como objetos físicos?
2. Os livros desaparecerão como objetos virtuais?
Respondendo à primeira pergunta, Umberto lembra que mesmo logo após a invenção da imprensa não era somente através dos livros que se poderia adquirir informação: haviam pinturas, imagens populares impressas, lições orais (peças teatrais) e assim por diante. Ele separa os livros em dois tipos: os que são para ler e os que são para consultar.
O primeiro tipo de livro, acredita, dificilmente será substituído pela simples expansão da "grande rede". Seria aquele "livro de cabeceira", que você começa na página um e segue em ordem até o fim, seguindo o roteiro, a trama, a história em sua seqüência natural. Já existem mídias como os e-books e até leitores eletrônicos portáteis para e-books mas os mesmos não emplacaram. Todos sabemos quão cansativa é realizar uma leitura direto da tela do computador e, geralmente, acabamos usando a impressora para colocar no papel textos muito extensos.
Quanto ao segundo tipo de leitura, a de consulta, representada por dicionários e enciclopédias principalmente, esse sim torna-se facilmente substituível pela mídia eletrônica e mais recentemente pela internet. Hoje já existem enciclopédias inteiras em um ou em poucos CDs e, melhor ainda, podemos formular complexas perguntas que podem ser respondidas em minutos sendo que antes necessitavam de consulta a vários volumes de uma enciclopédia ou mesmo a vários livros diferentes.
A necessidade de ter uma enciclopédia que muitos de nós sente (ou sentia) está cada vez menor nas novas gerações. Questões como custo e espaço físico – além da praticidade de transporte de um CD-ROM estão vencendo o gostoso cheiro do papel e sepultando definitivamente os livros de consulta impressa. Isto é uma constatação e basta consultarmos os pequenos que desde já estão nos ensinando como mexer em nossos próprios computadores.
Umberto Eco também cita uma nova invenção a ser cada vez mais explorada industrial e comercialmente: a impressão por encomenda (na qual o leitor, após fuçar nos catálogos de várias bibliotecas ou editoras, pode selecionar o livro desejado e mandar imprimir e encadernar um único exemplar usando a fonte escolhida. No Brasil, um dos pioneiros em impressão de livros sob demanda foi o Armazém Digital, que imprime livros de autores estabelecidos e também de completos anônimos que querem (e toleram) publicar seus escritos sem estarem sob o guarda-chuva de uma Editora ou Selo Editorial. Podemos encontrar um rápido resumo sobre a história do Armazém aqui .
A seguir, Umberto Eco tenta responder a segunda questão que ele mesmo havia formulado: "Os livros desaparecerão como objetos virtuais?".
Para tanto, Eco considera o surgimento de textos em que a infinidade de interpretações não depende só do leitor mas também da "mobilidade física" do próprio texto. Creio que presenciamos isto a cada entrada na Internet, onde através de um linque somos remetidos a outro lugar e de lá a outro e assim por diante. Nesta seqüência que não pára nunca, criamos nossas próprias leituras de textos hipertextuais disponíveis ao clicar de um mouse. Acontece o mesmo com todos impacientes como eu que ainda se aventuram a tentar assistir algo na televisão aberta, que conseguem no máximo ficar zapeando entre um e outro canal em busca de algo interessante.
Umberto diferencia os sistemas de textos propriamente ditos. Para ele, sistema seria a totalidade das possibilidades apresentadas por uma dada língua natural. Gramáticas, dicionários e enciclopédias seriam sistemas, com os quais poderíamos produzir todos os textos que quisermos. Já um texto propriamente dito não é um sistema lingüístico ou enciclopédico. "Um texto dado reduz as possibilidades infinitas ou indefinidas de um sistema para criar um universo fechado. Se pronuncio a frase "nesta manhã, comi no desjejum…", por exemplo, o dicionário me permite listar muitas unidades possíveis, contanto que todas elas sejam orgânicas. Mas, se eu produzo meu texto de forma definida e pronuncio a frase "nesta manhã, comi no desjejum pão e manteiga", excluí o queijo, caviar, o pastrami e as maçãs. Um texto castra as possibilidades infinitas de um sistema". Ainda deixamos de especificar se o pão era um pão francês, integral, de centeio, preto ou de linhaça, mas isto não vem ao caso, é somente meu devir criança invadindo uma conversa séria! Com certeza, a poesia, por não produzir um texto tão definido e fechado, freqüentemente possibilita múltiplas possibilidades de interpretação. Quando se consegue passar esta mesma percepção para a prosa, o painel que se descortina é fulgurante! É dado o exemplo de Finnegans Wake, de Joyce, obra aberta a numerosas interpretações, mas com certeza – diz Eco – o texto nunca dará uma demonstração do teorema de Fermat ou uma biografia completa de Woody Allen.
Para tornar um texto fisicamente ilimitado, Umberto lembra o exemplo atual de histórias criadas por múltiplos autores, quer seja seqüencialmente ou mesmo simultaneamente, com várias possibilidades de continuação seguindo-se a cada bifurcação determinada possibilitando incontáveis desfechos. Isso que escrevi agora me faz lembrar de Ilia Prigogyne, químico-físico russo que ganhou o prêmio Nobel de Física em 1976 se não me engano por seu estudo com estruturas dissipativas, baseado na segunda lei da Termodinâmica.
Em seu livro Order Out of Chaos ele faz um correlação entre suas pesquisas científicas e os sistemas sociais. É nesse momento, enquanto discute acaso e determinismo, que se encontra o gancho que me trouxe até aqui: para Prigogyne, o mundo não é nem todo somente acaso nem todo somente determinismo. Existem caminhos determinados até uma bifurcação. Quando chegamos nesta bifurcação, quem manda é o acaso (ou o livre arbítrio, em se tratando de seres humanos).
Voltando a Umberto Eco, diz ele que estas histórias de múltiplos autores já ocorrera no passado,citando então a commedia dell'arte italiana em que, a partir de uma sinopse histórica, cada apresentação diferia das demais, conforme a imaginação dos atores, sendo que dessa forma não se identificava uma obra única, escrita por um autor único.
Outro exemplo citado pelo autor é uma sessão de jazz, onde o improviso e a possibilidade de múltiplos resultados para uma mesma "música" são classicamente aceitos. Sobre a questão do fim da autoria, Umberto acha que a produção destas histórias coletivas e infinitas por meio da Internet não acabarão com a literatura autoral. Diz ele: "A rigor, marchamos rumo a uma sociedade mais liberada, em que a criatividade livre vai coexistir com a interpretação de textos já escritos. Eu gosto disso. Mas não podemos dizer que substituímos uma coisa antiga por uma nova. Temos as duas.".
Um último aspecto abordado pelo romancista e semiólogo italiano dentro da textualidade livre possibilitada pela Internet diz respeito às possíveis modificações que poderíamos facilmente fazer se tivéssemos os livros de forma interativa e hipertextual. Cita-se o exemplo de Guerra e Paz de Tolstói. Poderia-se criar um texto em que "Pierre Besuchov consegue matar Napoleão ou, conforme as tendências da pessoa, Napoleão consegue uma vitória completa contra o general Kutuzóv", o que é impossível com o livro já escrito. O romance Guerra e Paz já escrito – diz Eco – não nos põe frente a frente com as possibilidades infinitas da nossa imaginação, mas sim com as leis severas que governam a vida e a morte.
Para concluir, o autor de "A Ilha do Dia Anterior" e "O Pêndulo de Foulcault" usa o livro "O Miseráveis" de Victor Hugo, onde a batalha de Waterloo é descrita do ponto de vista de Deus, que a acompanha em todos os detalhes, dominando o cenário com a sua perspectiva narrativa para encerrar com uma brilhante defesa a favor dos livros:
"A beleza trágica da Waterloo de Hugo reside em que os leitores sentem que as coisas se passam de forma independente de seus desejos. O encanto da literatura trágica reside em que sentimos que seus heróis poderiam ter escapado de seu destino, mas não o conseguem em razão de sua fraqueza, de seu orgulho, de sua cegueira. Além disso, Hugo nos diz: "Tamanha vertigem, tamanho engano, tamanha ruína, tamanha queda, que assombrou a história inteira, será algo sem uma causa? Não… O desaparecimento desse grande homem foi necessário para a vinda do novo século. Alguém, a quem ninguém pode fazer objeções, cuidou do evento… Deus omitiu-se, Dieu a passé". Isso é o que todo grande livro nos diz, que Deus se omitiu, e Ele se omitiu para o crente e para o cético. Há livros que não podemos reescrever porque sua função é nos instruir acerca da necessidade e, só quando respeitados tal como são, podem eles nos fornecer tal sabedoria. Sua lição repressiva é indispensável para alcançarmos uma condição mais elevada de liberdade intelectual e moral."
E é com este gran finale que Eco nos dá uma lição de humildade e ao mesmo tempo nos lembra de nossa humanidade, sepre presente em qualquer forma de arte, quer seja na literatura impressa ou na hipertextual. Sigamos nosso misto de criação-transformação-recriação sempre em busca de algo melhor para todos que nos cercam.
(Este Editorial foi adaptado de um artigo em duas partes escrito em 20 e 25 de dezembro de 2003 para o weblog Escrever Por Escrever. A retomada do tema busca trazer à tona a discussão acerca da produção literária virtual em relação à produção impressa)
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