“Aqueles que se dizem revolucionários, mas que só se preocupam com as condições externas (objetivas), esquecem que são eles mesmos que devem ser os primeiros a mudar de vida. Que devem começar por vencer a contradição em que vivem, a qual lhe permite gozar dos benefícios do sistema, ao mesmo tempo em que nutrem o desejo de derrubá-lo.”
L. Tolstoy
Movimentos libertários não se opõem à globalização per se, não se opõem ao comércio, mas às relações globais que outorgam um poder cada vez maior às grandes corporações, ao mesmo tempo em que debilitam por inteiro povos e nações. O ativismo surgiu desta conscientização, e a inconformidade centra-se não somente na pobreza, na privatização, na especulação financeira e no desequilíbrio comercial, mas também em instituições específicas como o FMI, a OMC e o Banco Mundial. Centrar-se nelas faz com que a manifestação não seja apenas contra a exclusão social, mas também contra as fundamentais causas que provocam decisões não-democráticas. A crítica deve preceder a exclusão.
O emergente e flutuante movimento antiglobalização é, em poucas palavras, um movimento radical com o potencial de ir à raiz dos importantes problemas econômicos de nossa atual época, assim qualquer manifesto de cunho anarquista que vise a resposta sobre qual outro mundo seria possível, hoje, deve entender, analisar e propor respostas à questões como a dominação da mídia de massa, da internet, do império norte americano, de seus instrumentos corporativos, entender a relação deste mesmo império antes e após os atentados de 2001 ao WTC com a rede militante islâmica, entender o como em nosso país a democracia se dá pela ditadura do discurso. Isso significa criar uma nova malha de abrangência, já que não existem estudos contundentes e atuais sobre como um movimento, seja ele anarquista ou não, pode sobrevir ao horror econômico gerado por estas causas, nossos maiores pensadores nasceram, viveram e morreram cedo para questionamentos nesses parâmetros, ao passo que a anarquia virou marca publicitária de jovens que pouco, quando nada, entendem de maneira real sua evocação subversiva. Não há êxito organizativo contra a globalização; e um dos fatores que o impede é a falta de objetivos em longo prazo em questões econômicas e políticas, assim como em outras esferas da vida, que sejam convincentes e sugestivas. Os movimentos anarquistas oferecem valores aos quais aspiramos – justiça, igualdade, solidariedade, diversidade e participação social – mas quando os meios de comunicação oficiais sustentam que tais movimentos não apresentam nenhuma alternativa às relações existentes, têm razão em boa parte das vezes, com relação a alguns movimentos de cunho reacionário. Bem poucos entre os que se manifestaram em Seattle, por exemplo, ou em outros recentes eventos antiglobalização poderiam responder convincentemente a um interlocutor: “Nós sabemos que você é contra os benefícios privados, as corporações, as hierarquias, o livre comércio e a competitividade de mercados. Sabemos que deseja a igualdade a todos e nisso nós também nos solidarizamos a você; mas, afinal de contas, você é a favor do quê? Como você, meu caro, quer fazer funcionar a economia sem todos esses elementos que renega? Ora, se não você não tem uma resposta convincente, deixe de dar murro em ponta de faca e aceite a globalização como ela é!”. Um ativista de fachada certamente não poderia gerir uma resposta. Pode parecer exagero, mas é extremamente difícil encontrar pessoas realmente críticas e ativamente centradas em seu objetivo nos movimentos antiglobalização, e isso é um empecilho crucial para o sucesso dos mesmos.
Vale dizer, ao interlocutor acima (e bem que poderia ser Margaret Thatcher ou um dos partidários de seus argumentos), que produzir e distribuir ao mesmo tempo em que se criam divisões de classe impondo a pobreza sobre muitos e enriquecendo a poucos, devastar o meio ambiente, reduzir os bens públicos, promover um individualismo anti-social, proporcionar trabalho indigno reservando-se um poder decisório desproporcional para uma minoria não é fazer funcionar a economia. É outorgar poder e benefícios em troca da corrupção movida à exploração, que visa, também, outros tipos de poderes e benefícios. O funcionamento da economia deveria empreender produção, consumo e distribuição ao mesmo tempo em que acrescenta diversidade, igualdade na distribuição e auto-gestão, desenvolvendo paulatina e simultaneamente os potenciais de todas as camadas produtivas, de todos os trabalhadores que são, também, os consumidores, ao invés de atingir o oposto.
Outro importante ponto é ressaltar a diferença que existe entre dizer que não há alternativas contra a globalização (e existe imoralidade e ilógica em tal ceticismo) e demonstrar que realmente elas não existem. Também seria ilógico dizer que há uma visão bem definida do que oferecer em contrapartida, pois para que tal visão seja realmente valha, ela deve ser entendida e apoiada por todos; e como sabemos, existem facções divergentes entre os reacionários que criam mazelas que apenas maximizam a vulnerabilidade das propostas anarquistas. A falta de uma visão integrada e positiva dá ao movimento reacionário um tom desproporcionalmente negativo e pouco atraente para aqueles que não o são; produz no contador, no publicitário, no médico, no caixa de banco, no sapateiro, no lixeiro, na prostituta, no padre, na minha e na sua mãe uma carência de expectativas em longo prazo e por isso, um comprometimento meramente débil, vulnerável frente a mais reles crítica ou dúvida, uma incapacidade de nos proteger do ceticismo. Ação conjunta e ativismo crítico somente existirão quando essa vulnerabilidade der lugar a propostas reais de mudança, e adesão às mesmas. Além disso, a maioria crê, no fundo, que as instituições básicas atuais não são suscetíveis de melhoria e que, pela própria natureza dessas instituições, qualquer avanço de movimentos reacionários seria imediatamente desarticulado e transfigurado para o benefício das elites. Cristalizar objetivos institucionais reais que ofereçam uma clara descrição de um sistema de remuneração alternativo que recompense competência e produção, uma organização de trabalho alternativa à distribuição hierárquica na qual alguns dão ordens e outros as acatam, um modelo de distribuição alternativo e estranho aos quartéis, extermínio da concessão de poder monopolista nas posições de elite. Convencer céticos e criar expectativas tangíveis que descrevam uma maneira digna de organizar a economia e minimizar seus males. Esse tipo de visão não pode esperar, a descrição do modus operandi é um estágio pós-crítica, antes há a adesão à crítica e o comprometimento real. Ademais, ao contrário do que se pode presumir, definições, em qualquer ramo da ciência, teoria ou prática, são o último degrau a se alcançar. Elas existem, são a tradição de qualquer movimento e precisam ser compreendidas, mas um manifesto não se faz por meio de definições, mas na capacidade de conservar a anarquia dentro de um ativismo prático, real. Ninguém precisa entender Tolstoy para intentar a queda do Estado. Precisa sentir a repressão do mesmo e acreditar que pode ser melhor. Até mesmo para Tolstoy, que não era anarquista, o ponto de partida foi a indignação, e não o academicismo.
Embora qualquer plano de organização social necessite de instâncias críticas que apenas se efetivam dentro de um longo período, a anarquia carece de um programa comum em curto prazo. Não que nos faltem totalmente tais programas, existem propostas como a restrição dos tratados comerciais, como a da adaptação e abolição do FMI e da OMC, entre outras. Em suma, temos todo tipo de demandas para reformas, tanto no âmbito local quanto no internacional, mas, ainda que exibamos um belo leque de excelentes objetivos imediatos, carecemos de (volto a dizer) unanimidade sobre eles. No movimento anarquista atual, não há a unificação de programas de ação imediata. Até agora, a anarquia não foi capaz de coordenar forças ao redor de um subconjunto adequado de possíveis objetivos imediatos sem o prejuízo de outros dos seus imperativos.
A razão por que isso ocorre, penso ser, não é o simples fato de que é difícil obter certa unidade, mas precisamente porque o movimento atual evita literalmente a busca de tal unidade. Sequer a tenta porque muitos acreditam, não sem ingenuidade, que a busca da unidade abarca o risco de despencar num autoritarismo e sectarismo; e este medo impede a elaboração de um quadro compartilhado. Implantar a anarquia com as atuais relações de comunicação de massa, colonização numérica e suplantar o modelo capitalista neo-liberal recai na necessidade de se repensar também as relações dentro do próprio movimento visando sua maior coesão e abrangência. Instâncias críticas, correção dos erros do passado e ação pensada. Neoliberais alegam que não pode existir coesão sem autoridade única e utilizam esse argumento para justificar sua autoridade. Parecemos estar de acordo sobre não poder existir unidade se não há autoridade, mas também utilizamos o mesmo argumento para dizer que, desta mesma forma, não podemos ter democracia, o grande filão argumentativo da implantação neoliberal mundo afora, se temos esta autoridade como fonte de unidade. Se a autoridade é usada como argumento contra a anarquia, ela é contra a democracia e sua formatação para todas as classes, do mesmo modo. Podemos colaborar democraticamente em um programa compartilhado. Podemos ter solidariedade dentro deste programa compartilhado e faze-lo compatível com o respeito pelo trabalho de todos e diminuição das diferenças vigentes. Unidade de objetivo, coesão e solidariedade não se excluem mutuamente.
Outro fator que dificulta o êxito organizativo não somente da anarquia, mas de todos os movimentos de cunho reacionário tem sido um problema tático, mais que de visão ou de programa de ações. Para alcançar reformas em qualquer escala, especialmente aquelas reformas “não-reformistas” que nos situam em boa posição para obter maiores conquistas, deve-se aplicar extrema pressão sobre as classes no poder que têm autoridade para ceder a novas demandas. Há de se provocar custos sociais a essas elites até chegar a um ponto em que decidam que ceder é a melhor saída. Isso será tão necessário para modificar acordos comerciais ou eliminar o FMI como já o é para almejar aumentos salariais, nova legislação que abranja o sexismo, etc. As elites não respondem nem à razão, nem à ética. Respondem aos movimentos que fazem com que seus interesses se vejam prejudicados. Aqui vem outra parte da problemática: qual é o custo social que as elites considerariam intolerável e que as obrigaria a ceder? Se as políticas de globalização estão produzindo movimentos que não só se opõe ao próprio conceito de globalização, mas também aos negócios tal qual existem, e parecem ter a capacidade de crescer sem limites; então as elites cederão. Várias táticas podem ajudar a construir tais movimentos e, ao mesmo tempo, revelar às elites uma trajetória de aumento de seus riscos, fazendo com que elas os levem em conta e, com o tempo, voltem atrás.
As táticas, como já se sabe, são aquelas que trazem um número cada vez mais crescente de pessoas à oposição, que reforçam o compromisso entre os dissidentes e que revelam sua crescente militância e esforço por novos movimentos. As manifestações e os encontros fazem parte disso. A desobediência civil, princípio básico anarquista, é parte disso. Boa parte dos movimentos dissidentes está deixando de lado suas bases e está, em alguns casos, orgulhosa disso, apesar de ser uma maneira contraproducente de atuar. É solução abandonar a desobediência civil e a militância? De forma alguma. A desobediência civil tem uma clara função dentro de qualquer ativismo: mostra às elites que existe uma trajetória de dissidência que está ameaçando o status quo. No caso da anarquia, a desobediência civil envolve pessoas com uma trajetória de compromisso duradouro. Mas, ainda que conservemos a desobediência civil, temos que nos dar conta que este não é um atributo que define nem a anarquia, nem qualquer ativismo. Nenhuma tática o é. Isso é repensar a anarquia para os dias atuais: o número de pessoas que atendem aos eventos antiglobalização sem transgredir as leis e o número de pessoas que sequer comparecem a tais eventos, mas que estão cada vez mais abertos a esses pontos de vista, são de igual ou maior importância que o número de praticantes ativos da desobediência civil. Se não aumentam os participantes, não seremos uma ameaça crescente e nossas aspirações não representarão uma trajetória de custo social às elites.
Embora de caráter radical, as manifestações não devem constituir o eixo principal sobre o qual gira qualquer ativismo nos dias atuais. Antes de mudar a sociedade, devemos mudar a nós próprios. Os profetas da não-violência são muito mais perigosos para o Estado do que quaisquer pretensos revolucionários, sejam socialistas, comunistas ou anarquistas. Pois o Estado sabe muito bem tratar com estes, que jogam pelas mesmas regras, mas já não sabe como se haver com os adeptos da não-violência, que se situam num campo onde o Estado já está de antemão derrotado. As manifestações são o componente mais visível da anarquia, é certo, mas as pessoas precisam de instâncias mais seguras para aderir a qualquer movimento; ninguém estará, de antemão, disposto a correr por entre uma nuvem de gás lacrimogêneo, mas todos são imprescindíveis para incrementar o custo social do quadro econômico atual e mostram-se muito valorosos em ajudar a que isso aconteça. Converter a formação e poder de decisão dessas pessoas é a pedra fundamental que constitui o futuro não só da anarquia, mas da própria globalização.
Como se vê, o verdadeiro ativista, seja anarquista ou não, somente se torna mais forte através da organização e unidade livremente aceitas, certeiro em suas posturas analíticas e em suas percepções proféticas.
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