A Revolução Numérica e a Nova Colonização.
“O governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada que, tão logo se torne governante ou representante do povo, por-se-á a observar o mundo proletário de cima do Estado; deixará de representar o povo, passando a representar-se a si mesma e as suas pretensões de governá-lo.”
Mikhail A. Bakunin, in: Deus e o Estado.
Maior fenômeno social dos últimos quinze anos, a Internet mais do que nunca suscita controvérsias e entusiasmo. Na verdade, sempre que aparece uma inovação tecnológica acompanhada de um efeito de moda, uns se extasiam e outros, mais cautelosos, se assustam. Muitas vezes a Internet é apresentada como panacéia em matéria de educação, como se pudesse proporcionar a recuperação de todos os atrasos num passe de bits.
Não resta dúvida que a rede mundial é um novo continente que a revolução numérica nos permitiu atingir, assim como a máquina a vapor foi para a revolução industrial ou como a caravela foi para revolução náutica que permitiu Colombo, ainda que perdido, desembarcar na América.
Mas o que é a revolução numérica? Havia, até pouco tempo (podemos dizer, sem exageros que até o momento presente) três sistemas de signos: a escrita, o som e a imagem. Cada um destes signos foi o indutor de todo um sistema tecnológico, pois o texto deu origem à edição, imprensa, livro, jornal, tipografia, máquina de escrever, linotipia, entre outros. A escrita está na origem de um verdadeiro sistema tecnológico; assim como o som que originou o rádio, o gravador, o telefone e o disco. Já a imagem, por sua vez, produziu obras-primas através da pintura, gravura, quadrinhos, cinema, televisão, vídeo e etc.
O papel da revolução numérica aí se encaixa: faz os sistemas de signos convergirem para um sistema único: texto, som e imagem podem ser exprimidos, computados, geridos em bits. É a multimídia (várias mídias) como o CD Rom, videogames, DVD e, sobretudo, a Internet. A revolução está no fato de que não há mais diferença entre sistemas tecnológicos para veicular, indiferentemente, um texto, um som ou uma imagem; já que o mesmo veículo permite o transporte destes três sinais em tempo real, separada ou conjuntamente. Esse sistema constitui a transformação mais radical da comunicação de todos os tempos porque a muda a uma velocidade que, embora descontrolada, hoje rege a comunicação social.
Eis porque assistimos à fusão das três máquinas: televisão, telefone e computador; e, da mesma forma, acompanhamos a fusão-concentração de todas as empresas desses três setores. As firmas eletrônicas se fundem com as empresas de telefonia, com grupos de tv a cabo ou de comunicação para atingir megagrupos midiáticos integrados.
Se a revolução industrial se produziu quando a máquina substituiu o músculo e a força física, na revolução numérica a máquina substitui não a força, mas sim o cérebro. A informática, seja ela aplicada à medicina, educação ou economia, permite substituir funções cerebrais cada vez mais numerosas. É a cerebralização das máquinas. Atualmente é possível, graças à revolução numérica, colocar em rede máquinas com um processador central de informações, um cérebro, um sistema de comunicação capaz de criar uma malha que abrange o conjunto do planeta, o que torna possível a troca intensiva de informações. Todo esse novo mundo fascina e preocupa os educadores, que se perguntam como domar, ou temem ser domados pela Internet.
Se as origens da Internet remontam aos fins da década de sessenta, seu verdadeiro nascimento para o mundo data de 1974, quando respondendo a um desejo do Pentágono, universitários (a Internet nasceu dentre nerds de laboratório na universidade) estabeleceram a norma comum de associar todos os computadores e lhe deram um nome: Rede Interna (Internet). Porém, o desenvolvimento e propagação massiva da galáxia Internet é, como sabemos, mais recente, podemos datá-la de fato em 1989 (ano-chave com a queda do Muro de Berlim) quando, em Genebra, pesquisadores do CERN criaram a World Wide Web baseada em uma nova concepção de hipertexto, que transformou a rede mais sociável e “amigável”. Desde então, o número de computadores conectados à rede mundial duplica a cada ano, e o número de sites, a cada bimestre. Estima-se que o número de usuários da rede chegará a 800 milhões em breve e o tempo passado diante de um computador superará o de todas as outras mídias.
Isso já acontece em certos locais, onde crianças de famílias mais abastadas passam mais tempo interagindo com um computador do que com os professores ou com os próprios pais: correio eletrônico, fóruns de discussão, documentação, compras diretas e consultas de arquivos raros são de uso cada vez mais freqüentes, rápido, fácil, interativo e até agora, pouco oneroso.
Diz-se que é tão difícil de destruir a Internet quanto uma enorme teia de aranha com um tiro de fuzil. Seu protocolo é de domínio público e não pertence a nenhuma firma comercial. Indestrutível, descentralizada, propriedade de todos que a acessam, a rede fez renascer o sonho utópico de uma comunidade humana harmoniosa, planetária, em que cada um se apóia no outro para se aperfeiçoar e afiar a própria inteligência. Ou seja, a educação passa a ser um aspecto dessa nova forma de relacionamento. E quando a educação se torna aspecto de relacionamentos da comunicação midiática ela apenas se efetiva carregada de ideologias.
Muitos consideram, não sem ingenuidade, que quanto mais comunicação em nossas sociedades, mais harmonia haverá nelas. Enganam-se. A comunicação, em si, não constitui um progresso social. Menos ainda quando ela é controlada por grandes empresas de multimídia e quando ela contribui para aumentar as diferenças e desigualdades entre os cidadãos do mesmo espaço. A globalização dos mercados, dos circuitos financeiros e do conjunto de redes imateriais leva a uma desregulamentação radical, com todas as conseqüências como o declínio do papel do Estado e dos serviços públicos. A Internet, então, se torna revolução numérica, pois é o tr(i)unfo da empresa e de seus valores, do interesse privado e das forças de mercado contra o social.
Não por acaso, desde a segunda metade da década de 90, organismos centrais da globalização, como a OMC, tornaram-se os principais centros de debate sobre a nova ordem comunicacional. Classificada como “serviço”, a comunicação deu lugar a um enfrentamento direto entre a União Européia e os Estados Unidos e a protestos cívicos. Vale dizer que a OMC classificou também a educação como aspecto do serviço de comunicação, e, repito, a educação entendida como aspecto de comunicação midiática apenas se efetiva quando carregada de ideologias.
Nestes embates observa-se ainda maiores diferenças entre ideólogos da mercadoria – como norma aplicável a qualquer produção – e os defensores das identidades culturais; e o debate está longe de se encerrar.
A idéia central dos ultraliberais é a necessidade de deixar reinar a livre concorrência, em um mercado “livre”, entre “indivíduos livres”. Essa idéia é expressa nesses termos: “Deixem as pessoas se educarem como quiserem. Vamos confiar em seu bom senso.” Isso gera um quadro assustador, pouco percebido: A única sanção aplicada a um produto cultural ou educacional é seu fracasso ou sucesso no mercado. Essa é a conseqüência da educação entendida como aspecto da comunicação.
Muitos dirigentes políticos não hesitam em tirar conclusões grandiosas: os cidadãos devem se preparar para mergulhar em um “mundo permeado pela informação”, ou seja, “chega de obrigações e obstáculos que já pesaram por tanto tempo sobre a educação, a cultura e a imprensa”, mas se enganam porque não se pode ignorar que uma técnica nunca é neutra, que ela sempre vem acompanhada de um programa de transformação social e que as grandes mudanças técnicas nos modos de comunicação e educação, como os que a Internet impõe, são ainda mais carregadas em ideologia.
Já temos prova disso desde a megafusão, em fevereiro de 2000, entre a América Online e o conglomerado Time-Warner-CNN. Este último é o primeiro grupo de comunicação planetário, e a AOL, um portal de acesso ao WEB, a maior empresa da Internet. Essa fusão constitui também um exemplo das aberrações do que se chama a “nova economia” (a atividade das empresas especializadas nas novas tecnologias da comunicação, informação e da genética) pelo menos antes do crash do índice Nasdaq em 2000. Com essa fusão, a Internet, até então relativamente independente, tende a se tornar um elemento integrado da grade midiática e torna-se ameaça para a mídia tradicional na medida que sua plataforma integra televisão, imprensa, edições escolares, música, videogames, informações, dados financeiros, esporte, banco pessoal, compra de ingressos, passagens, secretária eletrônica, meteorologia, documentação e etc. Transforma a mídia de massa em máquinas de vender topo tipo de produtos e serviços, e dentro desses serviços, a educação, entendida, mais uma vez, como apenas um aspecto da comunicação midiática.
Até recentemente, dizia-se a televisão possuía a missão de informar, vender, educar e entreter. E a maior crítica que se faz da televisão, enquanto mídia de massa, é essa última função: divertir. O entretenimento pode ser transformado em alienação, cretinização, embrutecimento, e levar a descerebralização coletiva, ao condicionamento das massas e à manipulação das mentes, principalmente dos jovens. O receio que existe sobre a Internet é um pouco diferente, mas tão preocupante: o de que as três principais funções da mídia dominante sejam anunciar, vender e vigiar.
Anunciar porque a economia da Internet é essencialmente de natureza publicitária. A cultura da gratuidade da rede só é possível porque anunciantes assumem os custos do funcionamento do sistema, para que este repercuta nas compras feitas pelos internautas. Vender porque este é o objetivo principal da rede mundial. Já era o da mídia tradicional, mas a diferença capital é que com as outras mídias não se podia comprar diretamente.
Por fim, vigiar se torna uma função primordial porque cada manipulação na rede deixa uma marca. Aos poucos, o internauta, sem querer, desenha seu auto-retrato em termos de centros de interesse (culturais, ideológicos, lúdicos, de consumo) E uma vez estabelecido esse retrato, a manipulação se torna maior.
É importante notar o número de pessoas que usam uma mídia, ou número de internautas que passam por um portal. Esse número de fiéis é a verdadeira riqueza de uma mídia, mais do que seu conteúdo ou de quem a produz. Se antes se vendia informação, hoje se vende consumidores a anunciadores. Com isso, a informação pode ser oferecida gratuitamente, como isca: há atualmente mais de três mil jornais de acesso livre e gratuito na Internet. Sem contar os canais de rádio e televisão. Isso leva a espetacularização, sensacionalismo, falta de qualidade e veracidade dos fatos e, conseqüentemente, a novas formas de manipulação do público, uma nova colonização onde os seres estão destinados a cidadãos cada vez mais desiguais no ciberespaço, devido à maneira como cada um lida com seu acesso, isto para aqueles que têm acesso.
A questão da acessibilidade é mais complexa do que parece: Mais da metade do planeta nunca usou um telefone. Em 47 países, um quarto dos Estados do mundo, não há sequer uma linha de telefone para cem habitantes. Em toda África há menos linhas telefônicas do que em Tóquio ou na ilha de Manhattan. Sem falar na desastrosa situação da alfabetização nos países pobres. Estima-se que mais da metade dos computadores ligados à Internet estejam nos Estados Unidos.
Essa “fratura digital” e as disparidades sociais provocadas pela nova colonização podem ser comparadas às desigualdades resultantes dos investimentos financeiros transnacionais, o que aumenta os impedimentos e restringe, ao contrário do que se pode concluir, ainda mais o acesso à rede aos meros mortais. Nos países pobres, nada menos que 26 companhias de telefonia foram colocadas a venda ao longo dos últimos seis anos. A norma global do futuro é a propriedade privada de todas as estruturas que constituem a plataforma informacional, hoje entendida como ciberespaço. Ideologias, colonização, acesso restrito, comércio, vigia. Tudo através de signos binários.
Os gigantes das telecomunicações como AT&T, Microsoft, AOL, Telefônica estão travando feroz competição, como se viu no leilão para atribuição das licenças de telefonia em norma UMTS. Esperam com olhos desejosos colonizar o ciberespaço juntando a notoriedade de seu nome com proezas de marketing, o que lhes fornecerá controle nas áreas de serviços e da educação; e mais uma vez, a saber: a educação entendida como aspecto de comunicação midiática apenas se efetiva quando carregada de ideologias.
A batalha decisiva, em escala planetária, tem como meta clara o controle de costumes sociais e o direcionamento dos mesmos segundo interesses de mercado.
O grupo que reinará na Internet dominará a comunicação, cultura de massa e educação, com todos os riscos que isso trará para a liberdade de espírito das pessoas e para a democracia. A saída apontará para a total desconstrução social, para uma nova forma de relações entre as pessoas que deverá suscitar ideologias que combatam o capital intrusivo de forma reacionária, para a negação total da religião, para a destruição deste novo Estado imperialista da mídia e para mais hostilidades entre as nações, constituindo o cerne da ideologia e do pensamento desconstrutivista, onde um novo mundo apenas será possível através de outra revolução, totalmente estranha ao horror econômico, unificada e na qual nossas razões reais e nossas ficções de desenvolvimento acabarão por nos transformar em anarquistas em potencial.
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