A Transgressão de Restrições pelo Capital, Os Novos Valores Civilizatórios e a Anarquia.
“Quem quer que seja que ponha as mãos sobre mim, para me governar, é um tirano. Eu o declaro meu inimigo”.
Pierre-Joseph Proudhon
No modo liberal democrático de ver o mundo, o interesse público seria definido naquilo que chamamos de Estado, nos seus ramos (executivo, legislativo e judiciário) e níveis (nacional, regional, local). Através desses mecanismos, os cidadãos se manifestam quanto às políticas públicas. De qualquer modo, o interesse coletivo estaria concentrado nessa autoridade política compartilhada, cuja construção teria regras constitucionais razoavelmente claras, através da representação de base geográfica e do voto individualizado. Além disso, seriam também rigorosamente territorializados os famosos monopólios do Estado: arrecadação de parte do excedente econômico para destina-lo a fins públicos (só o Estado pode tributar), a produção da norma jurídica (só o Estado pode criar leis) e o monopólio da espada (só o Estado pode exercer legitimamente a coerção física).
Por outro lado, temos os interesses privados, aqueles que constituem o mercado, através do qual se manifestam e combinam os interesses e preferências pessoais e de segmentos específicos. Aqui reina a livre iniciativa: as decisões descentralizadas de consumo e investimento. O mercado realizaria a coordenação dessas iniciativas: agrega vontades, compara, julga, hierarquiza, distribui. O mercado, em princípio, não tem território. Os seus “constituintes”, ao comprar e vender, “votam” no mundo que querem que exista e se reproduza. Esse modelo representaria o que podemos chamar de forma canônica da democracia representativa e da sociedade liberal-competitiva. Talvez seja mais uma imagem do que uma realidade, mas, como lembra Fernando Pessoa, a lenda se escorre a entrar na realidade, e a fecunda-la decorre…
Contudo, desde o final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, o mundo dominado pelo capital passa por notáveis transformações na estrutura e na produção, da concorrência e dos mercados, bem como na sua “ecologia”, isto é, no espaço institucional em que se movem (e se desenvolvem) os agentes microeconômicos, os empreendimentos. Cartéis, monopólios, as modernas sociedades anônimas, a integração vertical – modos pelos quais o capital busca suspender, controlar ou substituir a ação do mercado, em proveito do planejamento e do controle. Do lado dos trabalhadores, a criação dos sindicatos, dos partidos trabalhistas, socialistas de massa, movimentos anárquicos, a conquista paulatina do sufrágio e, portanto, da influência sobre as normas sociais sancionadas pela lei – meios através dos quais o proletariado procura opor e impor, à economia política do patronato, a sua própria economia política.
Temos também o crescimento da presença do Estado na regulamentação e direcionamento do mercado de três formas fundamentais: Primeiro, através das compras e da geração de bens e serviços públicos (cresce parte da riqueza nacional recolhida pelo Estado na forma de tributos e transformada em compra de serviços, na produção de certos bens, como infraestrutura, educação, saúde etc). Segundo, através dos mecanismos creditícios e fiscais que “selecionam”, positiva ou negativamente, as diferentes atividades sociais (subsídios, isenções, tarifas). E, por fim, por meio de leis e normas regulatórias (ambiente, condições de trabalho, controle da competição etc).
O crescimento do Estado e o desenvolvimento desses agrupamentos sociais alteram profundamente as formas pelas quais, no interior do espaço público, são medidas as preferências e vontades, e como são decididas as políticas. E o que mais cresce no Estado hoje é o seu braço executivo. Se ele intervém muito, precisa de complexa maquinaria para saber que tipo de intervenção fazer. E precisa de maquinaria para colocar em marcha as decisões. Precisa também relativizar a separação de poderes. A criação de empresas e agências ligadas a essa expansão do executivo faz com que sua tecnoburocracia assuma poderes legislativos (editando normas, portarias, regras que podem definir o sucesso ou o fracasso dos empreendimentos) e judiciários (operando com multas, julgamentos, recursos).
Esse modelo foi bem sucedido ao capitalismo, com a reconstrução do pós-guerra e um espetacular desenvolvimento de forças exploratórias. A acumulação de capitais se deu por um extraordinário crescimento dos investimentos diretos no exterior, sobretudo de investimentos de empresas norte-americanas instalando unidades produtivas em cada canto do mundo. As empresas verticalmente integradas foram cada vez mais virando empresas multiproduto, multidivisão, multinacionais – ou transnacionais. Mais do que isso, essas empresas foram acumulando ativos financeiros que precisavam ser constantemente reciclados, repatriados e reinvestidos. Transformaram-se em holdings financeiras, em que a relação com a chamada “economia real” é secundarizada em benefício da acumulação de riqueza líquida, e mais do que líquida, volátil: papéis que dão direito a pagamentos, juros, rendas mal distribuídas. Nos anos 70, isto já era um fato consolidado.
Nesse quadro, os mercados financeiros internacionais, extremamente regulamentados e compartimentados (inclusive e sobretudo o norte-americano) eram insuficientes. Daí resultaram as maravilhas do mundo globalizado, antes mesmo que esse adjetivo estivesse em moda. Tudo isso para dizer o seguinte: os movimentos sociais enfrentam agora um mundo muito mais transnacionalizado do que se imagina, pois nele o capital perdeu o medo e a cada dia ganha novos recursos para transgredir restrições. O movimento anarquista precisa continuar lutando em espaços nacionais – não pode sucumbir à tentação de abandona-los ao capital. Seria um erro gravíssimo deixar de combater nessas trincheiras – as trincheiras da democratização dos espaços políticos nacionais e locais. Uma das armadilhas das teorias globalistas hegemônicas é fazer crer que, dado o suposto “desaparecimento” do Estado-Nação, devemos esperar ou apostar numa nova arquitetura mundial. Mas o movimento anarquista precisa também expandir suas fronteiras, mais do que nunca. Poderá a anarquia transnacionalizar-se, impondo valores restritivos à organizações internacionais ou multilaterais e às citadas mudanças dos agentes do capital financeiro? Os conflitos registrados em Gênova e em Seattle, entre outros, mostram algumas dessas dificuldades. Também indicadores dessas tendências são as escaramuças dos chamados movimentos antiglobalização, forçando o Banco Mundial, FMI, OMC a prever instâncias em que certas ONG´s têm ao menos direito de voz. É preciso definir como se constituirão tais movimentos e como os mesmos se legitimarão diante de seus constituintes. Definir quem são seus reais constituintes, aqueles diante dos quais respondem e pelos quais respondem. É preciso definir quais são as credenciais, pesos, responsabilidades e representatividade do movimento reacionário, se a reação é organizada, e, portanto, justa e pensada. Definir programas para colocar a seu serviço os instrumentos criados pelo capital globalizado: internet, redes alternativas de rádio e televisão.
Um pouco dessa complexidade pode ser antecipada quando vemos, retrospectivamente, as dificuldades para a constituição de um movimento trabalhista mundial, j ano século 19. E se tratava de algo bem mais definido, pelo menos quanto à delimitação de temas e constituintes. Para complicar, a história está caminhando rapidamente e pode não deixar tempo para soluções que demandem tanta engenharia política. As confusões derivadas de atentados no Ocidente indicam que a bandeira do protesto contra as assimetrias da globalização corre o risco de ser apropriada por um Frankenstein da CIA e do Pentágono, numa caverna do Afeganistão. E a bandeira da liberdade corre o risco de cair nas mãos de outra criatura do mesmo sistema, igualmente sinistra, numa fazenda do Texas. E ambos talvez caminhem para um duelo ao pôr-do-sol com a incômoda particularidade de terem nas mãos muito mais do que um simples Colt 45.
Há 150 anos, o Manifesto Comunista de Marx e Engels não apenas indicava a multinacionalização do mercado e sua implacável destruição de tradições: “tudo desmancha no ar.” Apontava também para a possibilidade e a urgência de construir um mundo novo. Com uma insuperável coerência (que é o que tanto falta a muitos movimentos ditos de esquerda) concluía com: “proletários de todo o mundo, uni-vos.” Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, o Programa de Transição, de Trotsky, expunha o dilema: “Socialismo ou barbárie.” A barbárie pura e simples vigorou por algum tempo, assolando a civilização, depois dela, doses homeopáticas de horror vêm sendo aplicadas – na Coréia, no sudeste asiático, nas várias faces da África, no Oriente Médio, sem contar a silenciosa destruição do planeta. A constituição de uma nova internacional dos deserdados da terra é hoje quase que uma questão de sobrevivência da própria espécie humana. Ela não pode pretender ter um governo mundial, nem mesmo ter um partido único. Precisa realmente de uma central de referência para organizar a solidariedade e a esperança que move a violência, e agir nas trincheiras dos espaços locais, regionais, nacionais em cada canto do planeta. Uma missão deveras difícil numa época que parcamente sabemos de onde viemos e para onde vamos.
* NA INTERNET:
http://www.somaterapia.com.br/prazer.jsp
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