Simplicíssimo

Cinqüenta Segundos.

Cinqüenta Segundos.

– por Rodrigo Monzani

 

“- Senhoras e senhores, estou agora preso com uma algema que exigiu cinco anos de dedicação de um mecânico inglês. Não sei se me livrarei dela ou não, mas posso lhes garantir que farei o possível.”

Harry Houdini, Hipódromo de Londres

Dia de São Patrício, 1904

 

 

“- Foram apenas cinqüenta segundos”, Cristina declarou altiva segurando um cronômetro vermelho antigo, brinde de algum clube de caça do pai, tentando parecer esnobe enquanto Robin tossia devido à água imunda que acabara de engolir. Robin nunca se importara em mergulhar naquele riacho sujo, na verdade, apreciava a estranha sensação da água espessa, como se imergir seu corpo ali fosse mergulhar no próprio silêncio, flutuando no escuro, enquanto a vida permanecia um amontoado de rostos, horas e demônios.

 

Embora a noite se aproximasse, aquele seria o dia em que Robin bateria o recorde da pessoa que mais admirava: Harry Houdini, o ilusionista. “-Como ele consegue ficar sem respirar por tanto tempo? Acho que o tempo não passa igual para ele.” – eram seus comentários prediletos, após ver uma apresentação na qual Houdini ficara nada menos que três minutos dentro de um baú acorrentado num tanque de água gelada, saindo ileso pela borda da piscina enquanto o público do Hipódromo de Londres encarava-o com descrença e admiração. A simples insinuação de Cristina, certa vez, de que Houdini não passava de um charlatão desencadeou a própria ira de Deus em Robin, resultando numa briga na qual até Tinny, o gato alaranjado de Cris, levara um chute.

 

Aliás, a história de Tinny se misturava com a história de Robin, como se ambos, após tanto tempo de convívio, tivessem absorvido traços da personalidade um do outro. Quando o irmão de Robin fora encontrado pendurado pelo pescoço na árvore do quintal da vizinha, a senhora Ida, pendendo vagarosa e constantemente de um lado para o outro com o vento enquanto todos o procuravam, foi Tinny quem o encontrou; e subindo até o galho certo, o gato começou a roçar as unhas em riste no cabelo do menino morto, despenteando os fios loiros enquanto o sangue lhe percorria os contornos do queixo. Toda a família, inclusive Robin, se lembrava da cena, era o dia das mães, e quando todos viram o menino e o gato ali houve um silêncio frio, estático, quebrado apenas pelo rádio da empregada que entoava um programa evangélico dominical batista:

 

“… sua mamãe…”

“… seu papai…”

“… seu filhinho coitado que já se foi…”

“… Vinde a mim as criancinhas.” – voz doentia, rouca.

“… Você veio me dizer que eles voltarão???”

“… Eu vim dizer que eles voltarão…”

“… Eu vim dizer que eles se levantarão novamente!!!”

“… a Bíblia manda avisar que eles voltarão, os profetas disseram!!!”

“… venha para a casa, quem estiver cansado, que venha para minha casa…”

 

Embora o assunto emergisse apenas em ocasiões isoladas como passeios demorados de carro nos fins de semana ou quando dois parentes se encontravam na cozinha no meio da madrugada, nada de relevante quanto à morte do irmão de Robin fora descoberto. O que todos sabiam era que o menino havia morrido estrangulado, e a obsessão de Robin era poder ficar sem ar como o irmão, sob a superfi`cie do riacho com suas águas praticamente movediças atrás das cercas vivas da senhora Ida, como se, no fundo das águas negras, pudesse conversar com o irmão novamente, ou vê-lo com seu sorriso solitário em câmera lenta. Mas aquela senhora Ida não apoiava os mergulhos de Robin, sempre cronometrados por Cristina, filha de Ida.

 

Ida considerava Robin persona non grata. Lembrava-se de que, anos antes, Robin estava arremessando bolas de beisebol para o irmão, na rua: “Rebata a bola além da casa da velha, e eu te darei um milhão de dólares”, disse Robin, apontando para a casa de Ida, uma mansão decadente, antiga e com uma varanda quase toda de vidro na frente.

 

“- Ok!” respondeu o menino, pululando excitado como um demônio com um taco, sem pensar. Robin lhe jogou a bola e viu o irmão fechar os olhos sentindo o suor tilintar na nuca, os pés dentro do círculo de poeira, e ele a acertou em cheio, e a mandou tão longe que o queixo de Robin caiu ao ver que, sem desviar seu rumo, uma única bola, um projétil ínfimo, estilhaçou toda a varanda de Ida. Era uma chance impossível, o irmão nunca fora bom em beisebol, era sempre o último a ser escolhido para as brincadeiras na rua, exceto pelos gays e retardados, nunca rebatera bem, ou com força e pontaria, mas naquela ocasião o arco descrito pelo bastão coincidiu incrivelmente com as confluências do céu, e o menino e o beisebol, por um instante, se tornaram uma única entidade, capaz de transformar o medo, a incapacidade, a impotência numa única imensa alegria, como se as razões das inteligências angélicas lhe tivessem dado absoluto controle mental sobre o objeto inanimado que seguia velozmente para o alvo inevitável; cada movimento da bola que o menino imaginava (ricocheteando nas cadeiras e quinas da varanda) aconteceu; e apesar da confusão imediata, aquele momento se tornaria um dos mais inesquecíveis na vida de Robin, o dia em que seu irmão morto destruira a varanda da vizinha com uma única tacada, uma única bola, um único terror e assombro total transformados em inesquecível excitação.

Agora Robin queria vê-lo novamente, queria vê-lo praticamente todos os dias desde sua morte.

 

“- Não foram apenas cinqüenta segundos” – ele respondeu para Cristina, que lhe indicava os ponteiros do cronômetro.

 

“- Houdini é um mestre! Como ele consegue? O tempo não deve passar igual para ele” – Robin dizia a si mesmo, olhando de soslaio para o fundo do rio e para Cristina.

 

Cris, filha única de Ida, era a melhor amiga de Robin. A menina era mais apegada ao pai, Tom, desenvolvendo a estranha capacidade de imitar o homem com tamanha precisão que, ela percebeu, aquilo poderia lhe trazer vantagens: assinar cheques que roubava da escrivaninha do escritório para comprar seus livros favoritos, atender as ligações da diretora da escola imitando a voz de Tom com precisão, solicitar a dispensa dos acampamentos batistas nas férias através de cartas com o brasão da família… sempre tudo camuflado por sua beleza incógnita e áspera, como uma orquídea.

 

Conhecera Robin num dos aniversários da família, no qual os dois, entediados, desenvolveram o projeto de recortar figuras de crocodilos, hipopótamos, porcos e chimpanzés de uma enciclopédia e as colaram sobre os rostos dos familiares de Cris nas fotos da parede da sala. Os dois ficaram duas semanas proibidos de se verem após o episódio das fotos. Depois, se tornaram quase inseparáveis, principalmente durante as noites quando todos já dormiam e Robin, soturno, abria as caixas da sala de armas de sua casa e brincava com os rifles de seu avô. Ele e Cristina ficavam ali sozinhos, no escuro, mirando as armas descarregadas para as pessoas que passavam nas ruas, ou para as sombras que se movimentavam pelas casas da vizinhança:

 

“- Se quisesse, poderia matar o sr. Wilson agora mesmo.” – dizia Cristina apontando para a cabeça de um homem pingue que morava logo à frente. A verdade era que Cris se esforçava para não demonstrar o quanto apreciava a companhia de Robin. Inconscientemente ela sabia que a satisfação mais tênue obtida destas ocasiões não era algo para ser demonstrado.

 

A idéia de cronometrar o tempo que Robin conseguia ficar sob a água foi dela. “- Talvez, sem ar, você consiga ver seu irmão. Ele também morreu sem ar, é só descobrir o tempo de Houdini que você o verá. Você não pode passar a vida inteira sem se despedir dele.” – dizia Cris, convencida por hora das habilidades do ilusionista. A intenção dos dois era que o irmão de Robin lhe aparecesse dentro do rio, o rio do silêncio com suas águas espessas onde ninguém ia, era apenas o caso de descobrir como ficar sem ar como Houdini fazia.

 

“- Você consegue mais que cinqüenta segundos, Robin.” – disse Cris tentando encoraja-lo enquanto Robin expirava fortemente para tomar fôlego.

“- Se você pudesse ver as coisas como eu vejo…” – ele disse. Imergiu quando o sol já adormecia atrás do ancoradouro abandonado. Cristina disparou o cronômetro, acariciando os pêlos de Tinny, seu gato, que permanecia com uma expressão indecifrável, mas interessado no que os dois estavam fazendo.

 

Cinqüenta segundos se passaram… dois… três minutos…

 

Cristina se levantou sentindo pânico se edificar a sua volta, o coração disparado, mas não disse uma palavra. Tinny correu para uma árvore seca a tempo de ver Cristina andar em círculos, jogar o cronômetro no chão e mergulhar atrás de Robin.

 

Em quatro… cinco… seis minutos uma lua crepuscular se ergueu no céu escuro.

 

Tinny desceu de um galho seco, caminhou vagarosamente pelo ancoradouro empertigando a cabeça para os lados e se deitou à beira do riacho. Jogado no chão ao seu lado, o cronômetro, a certo ponto, parou de girar e o gato adormeceu apreciando a oportunidade de passar a noite ali, sozinho, à espera de Cristina e Robin.

Rodrigo Monzani

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