Simplicíssimo

Escárnio

Colocou o pesado copo embaçado sobre o balcão não menos
sujo e pediu mais uma rodada, girando o dedo no ar. Seria o 12º copo?
Não se lembrava. Sua cabeça girava como o bar à sua volta.
Vozes entravam e saiam, misturadas ao tilintar de copos, risadas
estridentes e perfume barato, lembrando o que ela usava. Tentou se
firmar nas pernas e sentiu seu passo vacilar. Não precisava muito para
perceber que já estava bêbado. O que ela diria ao vê-lo assim?
Sempre disse que você era um fracassado, diria ela, se pudesse.
Num canto, uma mesa escura denunciava uma silhueta conhecida.
Forçou a visão distorcida e não teve dúvidas. Jeitos e trejeitos. Era ela,
mas como? Tinha certeza de que a havia deixado na cama, no eterno
gozo da morte. Como se reerguera do além?
Sim, lentamente a estrangulara em cima da mesma cama que
muitas vezes fora fiel testemunha e conivente de tapas e beijos. Gritos
e desejo febril. A mesma que agora era cúmplice na tarefa final da
vida em comum que os unia no amor e no ódio.
Admitira que o traíra com Jorjão, o açougueiro músculoso. Canalha.
— Oras, não me faças rir com esta cara de corneado — debochou.
— Não ousaria — disse ela quando ele grudou em seu pescoço,
espumando de ódio.
Foi como estrangular um frango, ou, ainda melhor, uma galinha
ordinária. Sentia um delírio extraordinário. Quanto mais ela lhe cravava as
enormes e encarnadas unhas, mais ele vibrava por dentro, num deleite
que até mesmo podia excitar-lhe com a dor que dilacerava sua carne.
Lançava-lhe um olhar perturbador. Quanto mais lhe apertava o
pescoço, mais ela ria dele, enquanto uma lágrima fluía pelo canto de
seus olhos, expurgando o veneno de sua alma.
Morrera, enfim, com a mesma insignificância que viera ao mundo,
ostentando o sarcástico sorriso de desprezo pelos que a cercavam.
Morreu, e ali se conservara abandonada nos lençóis de cetim, gritando
do além-morte: Seu frouxo! Seu frouxo!
Ele saiu correndo, deixando portas abertas. Mas a voz embrenharase
em sua mente, acompanhando-o aonde quer que fosse. Entrou no
primeiro bar que encontrara. O movimento não era muito e a luz fraca
ajudava a camuflar o crime que lhe gritava na face.
Um canto na penumbra era o que precisava para apagar da
memória aqueles lábios cheios de escárnio e luxúria.
Frouxo! Frouxo!, soprava-lhe ao ouvido.
Jogou uma suja nota de dois cruzados sobre o balcão e se virou,
aturdido. Sentiu repulsa por si mesmo quando seus olhos a buscaram,
desejando que ela estivesse ali. E eles a descobriram.
Dançava fogosa nos braços de alguém, um zé-ninguém.
Sempre fora assim, despachada e leviana. Sabia que causava e
gostava de lhe deixar enciumado. Furioso, caminhou até lá. Terminaria
o que começou ali mesmo. Puxou agressivamente seu fino e rígido
braço, trazendo-a para junto de si.
— O que ta fazendo, maluco? — gritou o zé-ninguém.
Sua visão o enganara, induziu-o ao ridículo e expôs seu ciúme
doentio. Saiu apressado, tropeçando numa cadeira, segurando-a a tempo
de desviar-se da base onde golpearia em cheio com o rosto.
Vultos se misturavam às luzes nas calçadas e passavam por ele
sem que pudesse reconhecer expressões. Criaturas da noite sem nome
ou aparência, nada mais.
Caminhava entre acelerado e lasso, sem poder se agüentar nas
próprias pernas. Por que todos o olhavam? Sabiam a verdade? Estava seu
delito evidente? Todos ouviam aquela voz gélida acompanhando-o?
Arrastava aquele corpo criminoso e inerme pelas ruas sem rumo
certo, querendo chegar logo a lugar nenhum; querendo livrar-se da
emudecida voz que o escoltava incessantemente; querendo vingança,
querendo o doce sabor ferino da vingança.
Lá estava ela, no ponto de ônibus, conversando animadamente
com um crioulo caliente esbanjando virilidade.
Frouxo! Frouxo!, falava ela ao ouvido do negro sensual. Riam
dele. Correu até ela, pegou-a pelo cabelo. Antes que pudesse ver seu
atrevido rosto, um soco lançou-o por terra.
— Seu bêbado vagabundo! — disse o amante com olhar colérico,
enquanto protegia a grávida saliência da mulher assustada.
A sarjeta aninhava-o como se tivessem sido feitos um para o
outro. Homem e vala. Uma estranha afinidade e conivência da
desmoralização da humanidade.
Jorrava sangue do nariz e a aptidão com que os transeuntes o
desapreciavam não era pior que a contrição que seu crime causava
naquele desprezível e curto tempo.
Esgueirando-se pela divisória do ponto do ônibus, conseguiu
pôr-se em pé. Ainda aturdido, atravessou a movimentada alameda
e quase foi derrubado por algumas motos que passaram
escarnecendo de sua história inútil. Um palhaço no picadeiro de
sua monótona vida.
Quer morrer, vagabundo?, gritou um outro. Ria, enquanto
desvendava presas grandes e olhar vidrado.
Não sabia como tinha chegado ali, mas a bebedeira já não era tão
grande quando se deu conta de que estava em frente de casa. Em
alguma parte, lá estava ela. Bastava entrar.
As portas abertas consentiam o vento da extenuação sair com
sua arrogância fria e muda. Tocava-o como se estivesse à sua espera e
o convidava a entrar. Puxava suas mãos homicidas, levando sua carcaça
anêmica à alcova. A cama empunhava-a, enlaçando com o véu da
morbidez seu corpo macilento. Que patético.
Frouxo! Frouxo!, dizia-lhe ainda, indiferente. Desafiava-o para
que a amasse.
Jogou-se sobre seu corpo e a amou como um bicho, uma, duas,
a alva toda.
Quanto mais via naquele inexpressivo rosto o sorriso de escárnio
que lhe lançava, mais ele a desejava.

Priscila Magalhaes

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