Amizade não era uma coisa que Ludovico conhecesse bem, muito menos fosse íntimo.
Caboclo velho, nascido e criado nos cafundós da Bahia, desde cedo se habituara que a vida era dura e cruel, e não havia tempo a perder.
Sua mãe, que Deus a tenha, morreu de parto do último filho que, assim como ela também se embrenhou pelo mundo dos mortos.
– Melhor assim. – disse seu pai se referindo ao pequeno pedaço de carne estendido ao lado da mãe. – Ia dá trabalho mesmo cuidar sozinho de mais uma boca.
Apenas isso, sem tristeza pelas perdas, sem choro. Pegou a garrafa de pinga e a secou pelo longo da tarde rasteira que findava já no horizonte.
Montando no velho pangaré já de couro gasto, rumou para a cidade pra comprar mais bebida, deixando os filhos com a mãe recém morta pela noite adentro. No outro dia cedinho, cheirando a pinga, chegou com uma mulher.
– Essa ai vai ajudar a cuidar da casa. – disse o pai referindo-se a tal que estava rebocada de cores na cara, e cheirava a fumo e prostituição, o que mais tarde ficou comprovado pelo menino.
À noitinha Ludovico entendeu que tipo de cuidado a tal daria, pela festança que vinha do quarto do pai, na cama recém servida de esquife.
A dor que sentia pela falta da mãe só não era maior que a do corpo após passar os dias todos na roça, de sol a sol, com a enxada a trabalhar. Trabalho duro para um menino de doze anos, que acordava antes do sol dar o ar da graça e só vinha embora quando este, já dorminhoco, começava a se esconder por detrás dos montes.
A única coisa que ainda aquecia o coração do menino, era o livro de figuras que sua mãe lhe dera. Ela, assim como ele, não sabia ler, mas todas as tardes sentavam-se debaixo do grande pé de abacate e ela, mostrando-lhes a figuras, ia-lhe contando estórias, sempre belas, sempre com finais felizes.
– Finais felizes não existem.- disse ele consigo mesmo quando, sendo surpreendido pela nova dona da casa lendo o livro, foi obrigado a dar-lhe sua preciosa lembrança da mãe para aquelas mãos sujas de mulher da vida. E conseqüência disso ela jogou-o ao fogo crepitante do fogão a lenha.
Ludovico não reagira, apenas sentia umas lágrimas queimar-lhe o rosto. Seu pai não hesitara, com uma bofetada lhe mandou para o quarto.
– Homem não chora. E livro é coisa de maricas. Homem de verdade tem é de trabalhar.
E cada vez mais Ludovico foi se fechando, habituando-se às barbaridades que a vida tinha para oferecer, como se fosse comum sofrimento.
Cresceu, tornando-se um homem rude, sisudo, fechado em si mesmo, desconfiado da própria sombra se essa lhe oferecesse companhia.
Agora morava só, numa casinhola feita de barro e taquaras, sem porteira ao lado, sem flores, sem vizinhos e cachorro. Muito feia e triste, assim como foi a vida de Ludovico.
Vivia sentado no banco feito de um tronco velho e retorcido de árvore queimada que trouxera lá da mata. Pusera-o frente à portinhola da casa, e lá sentado, pés magros e cascudos na terra batida, passava suas solitárias tardes com um fumo de corda no canto da boca. Olhar longínquo, vagamente pairando em duas órbitas vazias, enclausurados.
Resumiam-se nisso os dias daquele caboclo, de nenhum parente que se soubesse vivo. Desde que abandonara a casa, aos treze, quando a mulher perdida lhe forçara ser seu homem, Ludovico não quisera mais participar daquela família estilhaçada pela podridão.
Ignorando os olhares indagadores de seus irmãos ainda pequenos, o menino homem trilhou seu próprio caminho, ganhando mundo no desconhecido. Lutando a peito aberto.
Trabalhou de tudo quanto é coisa, burro de carga, carpinteiro, pedreiro, peão e tudo o mais que pudesse ganhar sustento para sua carcaça cansada. Sobrevivendo assim na vala do mundo, á margem de uma família feliz.
Indo por fim, quando já não tinha mais tato para lutar, parar naquele casebre sem vida, á espera de um dia seus ossos repousarem do cansaço e da amargura.
Ludovico gostava de ficar assim, só em sua vida, sem ninguém que lhe importunasse com essas coisas de amizade, afeto. Essas baboseiras todas que ele ouvira de passagem, mas nunca fora apresentado pessoalmente. Exceto quando ainda tinha sua mãe, mas isto foi há anos demais, já não se lembrava e tampouco queria sentir.
Certa tarde estava Ludovico habitualmente sentado em seu banquinho queimado, com seu fedido fumo de corda na boca quando avistou um cão, magricela que fazia pena, vindo rumo à sua casa.
Ludovico mal humorado bateu com os cascos no chão enxotando o miserável faminto.
O enjeitado recuou e gemeu.
Vendo que o cão não arredara, Ludovico pegou um pedaço de pau que estava escorando a portinhola e rodou no ar num grito rouco, a fim de assustar o animal moribundo.
– Arreda daí, pesteado.
Mas nada do pesteado sair, deixando cair as ancas enfraquecidas, e com um palmo de língua pra fora, pôs-se a olhar Ludovico.
– Mas era só isso que me faltava, esse estropiado vir caçar canto pra morrer aqui. Passa daí carniceiro ou vou masgaiar você c’o esse tronco. – Zangou Ludovico, indo pra cima do cão, fumo pausado no canto da boca.
O cão não se moveu, parado ali ficou, a esperar pela morte certa que se aproximava. Baixou a cabeça, resignado com a sorte que teve.
Ludovico aproximou-se com a mão levantada, segurando com ira o galho sustentado com firmeza e ia lançar-lhe um repelão nas costas quando espiou por baixo do braço o mísero cão caído, olhos molhados, obediente à ameaça do homem.
Não teve coragem de descer o porrete no couro vagabundo daquele pobre que já estava quase que morto mesmo. Não era assassino, ta certo que tinha o coração duro feito pedra mas nunca matara sequer um rato.
– Oras, esse desinfeliz já esta mais pra lá do que pra cá. Não paga a pena tanto esforço, deixa estar que morre logo o moribundo, não precisa de meu despacho.
E virando as costas Ludovico deixou o animal, que a morte se encarregava de levar ele. – —- Que morra para encontrar descanso dessa vida.
O sol já se escondia quando Ludovico espiou pela janela. Queria ver se o cão sarnento já esticara as canelas. Ludovico não queria moscas juntando perto de sua casa.
Mas não é que o cão viu Ludovico e levantou a cabeça? Como que dizendo:
– Olha, eu ainda estou aqui, viu? Ainda não morri não.
– Diacho de cachorro que demora pra fechar os olhos. – resmungou, e pegando um caneco velho de alumínio, encheu de água e levou pro cachorro.
– Tome estropiado, se é pra morrer, ao menos que não seja com a garganta cheia de pó.
O cão fez um esforço, mas sua cabeça não obedecia e fraquejava pro lado. Impaciente Ludovico se viu na obrigação de por água na boca do desolado. O coitado sorvia a água que Ludovico jogava em sua boca, com um esforço digno de quem luta para sobreviver.
Ludovico deixou-o lá, não podia fazer muita coisa. Também o que queriam? que ele pegasse o moribundo e o levasse para sua casa? Que o colocasse em sua cama feita de tábuas velhas e um colchão de saco de estopa? Ai já era demais para aquele homem sisudo.
Cada qual com a sua sina, Ludovico também não fora privilegiado pela vida, comera do pão que o tinhoso amassara com o rabo. Não podia fazer muito pelo cão, e não queria.
Oras, mas que diacho, acaso Ludovico estava ficando mole? Ficando com pena do estropiado?
Arrumou lá um pedaço de polenta, e da soleira da porta chamou o cachorro.
– Vem estropiado, come aqui um bocado antes que esses ossos de vara tripa varem também essa pouca carne.
O cachorro ainda zonzo, mas animado um pouco depois de beber, levantou as orelhas atentas.Fraquejando pôs-se de pé, caminhou até a porta e pôs a comer a polenta que Ludovico lhe dera.
– Come sarnento, como que a vida também não foi mansa contigo.
E ficou ali olhando, calmo, passivo, enquanto o cão sarnento enchia a pança há muito visitada. Estirando-se pra descansar o jantar.
Ludovico, ainda de carranca fechada, resolver deixar o cão dormir ali mesmo, mas de manhã cedinho mandaria ele seguir carreira.
– Pois muito que bem, hoje você dorme ai, mas amanha cedo você arruma seus trastes e segue seu rumo. Vivi só minha vida toda e ta muito bom assim, num careço de companhia de um estropiado.
O cão escondeu o estreito focinho debaixo das longas e ossudas patas e ali ficou. Mas de madrugada o vento começou a fazer arruaça lá fora, anunciando que um temporal estava por vir. Sacolejava daqui, batia dali e a chuva caiu brava. Ludovico afligiu-se com a chuva, mas não por que tivesse medo, afinal um homem vivido não temia uns trovãozinhos de nada riscando o céu.
Via o coitado do animal lá fora ensopadinho até os ossos, afogando em tanta água que caia nesse mundo de Deus. Não se conteve, levantou de sua cama e abrindo a porta viu o cachorro tentando espremer seu corpo magricela no vão. Dava pena.
– Entra estropiado, senão você pega friagem nos osso, não quero também ser cúmplice da morte de um cão moribundo largado na chuva.
E olhando com ar de cachorro vadio, rabo entre as pernas, entrou meio incerto, sem saber se estava mesmo sendo convidado e temendo um chute no traseiro, como tantos outros que já havia recebido.
O desalentado cachorro foi deitar-se perto do fogão a lenha que mantinha ainda o calor da brasa que horas antes crepitou no fogo, ajeitando-se como pode não demorou a dormir. Ludovico, se sentindo melhor com a boa ação, mas sem desmanchar a carranca, foi novamente deitar.
O dia não demorou a amanhecer, mas o que sucedeu é que, pela primeira vez desde a morte da mãe, Ludovico foi desperto com afeto. É que o cão, agradecido pelo cuidados que o homem dispensara a ele, foi acordá-lo com calorosas e úmidas lambidas.
O caboclo velho abrutecido deu um meio sorriso, difícil de sair, enferrujado, talvez por estar em desuso há muito.
– Sai daí estropiado! Ora para de me babar nos cascos seu cão sarnento. Já sarou é? Então trate de picar a mula.
O cachorro, entendendo o que Ludovico dizia, escondeu as fuças debaixo das patas magriças, gemendo baixinho suplicante.
– Oras, deixe de maricagens, um marmanjão desses?
Como o cão mantinha-se firme em sua lamúria, Ludovico resmungou.
– Só mais hoje pra mó de recuperar de vez as forças, mas amanhã cedo você parte.
E o cão abanando o rabo, correu porta afora, correu aquela terra batida, urinou no banquinho de Ludovico, se refestelou o dia todo, fazendo companhia ao carrancudo Ludovico, que mesmo não querendo acabava rindo nos cantos da boca, dando água e comida ao animal.
Na manhã seguinte o cão, sabendo que devia partir não fez fita dessa vez. Sem esperar pela comida lançou um lânguido olhar sobre Ludovico e despedindo saiu pela porta.
Ludovico acompanhou-o com o olhar, e viu o cão partindo em direção á estrada poeirenta. Estrada vazia que levava pra esse mundo o fora, cheia de perigos e surpresas, como uma cobra á espreita.
De repente seu coração apertou até ficar miudinho, do tamanho de uma azeitona. Sentiu um vazio em sua casinhola, como se o cão sempre estivesse estado ali, fazendo companhia para sua solitária existência.
Caminhou até a porta, e enchendo os pulmões, gritou:
– Estropiado. Volta estropiado. Você não precisa partir assim também, sem rumo na vida, sem eira nem beira, se quiser ficar mais um pouquinho, pra mim ta tudo bem, a gente arruma um cantinho ai procê e tudo se ajeita.
E o cão estropiado, entendendo o que Ludovico dizia, virou-se radiante, latindo, latindo, dizendo em sua língua de cachorro.
– Eu também gostei de você
Veio correndo, o estropiado, e se esfregando nas pernas de Ludovico, despertou-lhe o sentimento da amizade e amor. arrancou-lhe um riso largo, sem fronteiras ou ressabio.
Ludovico até fez um carinho na corcova do bicho, lá do seu jeito brutão, pois ele não estava acostumado com essas larguezas de afeto. Mas o caso é que o cão estropiado ficou como estropiado mesmo, e aos poucos, conquistando o coração do velho caboclo, trazendo a alegria de sua infância roubada.
E Ludovico, nas gostosas tardes, sentava-se em seu banquinho, e relembrava as belas estórias que sua mãe lhe contava. Cão e caboclo, companheiros descobertos
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