O Choque de Civilizações e o Coração do Mundo Livre.
"[. . . ]o poder de assassinar e roubar legalmente pelo poder da espada, tanto no passado como nos dias atuais, tem fortalecido o governo e sustentado aqueles que governam; as prisões, as condenações à morte, e o poder servem para obrigar as pessoas a se submeterem a um governo que se estabeleceu pela violência e que não pode se sustentar a si mesmo senão pelo mesmo poder assassino".
[extraído de “A Declaration from the Poor Oppressed People”, 1649].
Foi ainda na última década que Samuel P. Huntigton, um ex-especialista em operações de contra-insurreição no Vietnã, depois diretor do instituto de Estudos Estratégicos de Harvard publicou o seu hoje célebre The Clash of Civilizations, concebido como um panfleto contra um rival teórico do Departamento de Estado, Francis Fukuyama e sua tese do fim da história devido aos embates entre ideologias libertárias. Neste livro, para a mente mais respeitada em assuntos libertários na maior potência do mundo, a derrota da URSS punha definitivamente um ponto final em todas as disputas ideológicas. A cultura comercial, e não a política ou a economia, enfim, dominaria o mundo.
Em Harvard, Huntigton enumerava oito culturas mundiais: ocidental, confucionista, japonesa, islâmica, hindu, eslava-ortodoxa, latino-americana e, possivelmente, africana (ele não estava certo de que a África fosse de fato civilizada). Cada uma delas encarnava diferentes sistemas de valores simbolizados, cada um, por uma religião que representasse a força central que motiva e mobiliza os povos. O principal divisor de águas passava entre o Ocidente (EUA) e o resto do mundo, pois somente o Ocidente, nas conclusões de Huntigton, valoriza o individualismo, o liberalismo, a constituição, os direitos humanos, a igualdade, a liberdade, as leis, a democracia, os mercados livres. Por isso, os Eua deveriam se preparar militarmente para enfrentar essas civilizações rivais e seus possíveis afluentes reacionários libertários, especialmente as mais perigosas, o Islã e a China, em termos mais claros, o petróleo do Oriente e as exportações chinesas, que, unidos, ameaçariam a paz do “coração do mundo livre”.
E o autor cansou de concluir em suas aulas e demais artigos propagados mundo afora pela mídia adotada ao modo ocidental de formação de opinião que o mundo não é uno, as civilizações se unem e dividem a humanidade, os povos identificam-se apenas com o sangue e com a fé, pelos quais combatem e morrem. Simplista, porém ocidentalmente correta, esta análise forneceu subsídios aos políticos e ideólogos de Washington e companhia; e o Oriente passou a ser considerado a principal ameaça, uma vez que constitui a maior parte do petróleo do mundo. Nessa época, a República Islâmica do Irã existia há uns quinze anos e combatia o Grande Satã com unhas, dentes e homens bombas; a guerra do Golfo e suas conseqüências haviam golpeado o poder do Iraque; a Arábia Saudita, contudo, permanecia um porto seguro com sua monarquia apoiada e financiada por tropas norte-americanas enquanto a civilização liderada pelos EUA organizava a morte lenta de dezenas de milhares de crianças iraquianas, privadas de alimentos e medicamentos devido às sanções impostas pelas Nações Unidas.
Tais condições exigem duas respostas fundamentais: A primeira é que o Oriente, há muito mais de mil anos, nunca foi monolítico. As diferenças entre mulçumanos senegaleses, chineses, indonésios, árabes e asiáticos do sul são bem maiores do que as que os distinguem de não-mulçumanos, por incrível que pareça tal constatação, e isso dificulta a organização de uma afronta direta à exploração movida pelo capital. Nos últimos cem anos, o mundo conheceu guerras e revoluções que atingiram todas as sociedades. O conflito de setenta anos ente EUA e URSS afetou todas as civilizações. Os partidos comunistas, movimentos anarquistas e demais expressões da dissidência cresceram e ganharam apoio de massas, principalmente na Alemanha luterana, mas também na China e na Indonésia mulçumana. Ao longo das décadas de 20 e 30 o apelo cosmopolita do marxismo e o desafio populista de Mussolini e Hitler dividiram intelectuais e movimentos europeus e árabes. O liberalismo, tido como ideologia norte –americana/britânica, era menos popular, e os anarquistas e fundamentalistas eram considerados uma versão moderna da frente francesa que combateu a favor da revolução na Bastilha pela liberdade, igualdade e fraternidade.
O segundo ponto: depois da Segunda Grande Guerra, os EUA apoiaram os elementos mais reacionários, usando-os como obstáculo ao comunismo e ao nacionalismo progressista. Recrutaram seus aliados entre radicais fundamentalistas e nenhum líder ocidental manifestou qualquer discordância. Objetivos anarquistas e dos demais reacionários começavam a sofrer a manipulação política dos EUA, fato que os descaracteriza até os dias atuais frente à opinião pública.
Existiram algumas nações orientais que, exceções, manifestaram discordância ao apelo norte-americano, já que o partido comunista era a força mais forte daquele lado. Mas sua vitória era inaceitável. Foi quando os EUA apoiaram alas mafiosas de traficantes de armas e drogas do oriente médio incitando-as a dizimar comunistas e reacionários aliados, sindicatos operários e anarquistas ligados a ex-URSS. Saddam Hussein se encarregou de boa parte deste trabalho e obteve, como recompensa, armas e acordos comerciais, até seu erro fatal de avaliação, em 1991, no Kuwait. Foi ali que Saddam assinou seu recente enforcamento.
Tal contexto revela que, para os EUA, o apoio secreto ao terrorismo funcionou e funciona. A violência também, no que diz respeito à repressão aos comunistas e reacionários, e na utilização de facções destes últimos no intento de pôr fim a URSS. Revela também que é um equívoco pensar que reagir seria um instrumento dos fracos. Como a maioria das armas mortíferas, fundamentalismo e movimentos libertários são armas dos poderosos. Quando se diz o contrário é unicamente porque os poderosos controlam também os aparelhos ideológicos e culturais, que permitem que o terror deles seja visto como uma coisa diferente do terror. Um dos meios mais comuns de que dispõem para chegar a tal resultado é fazer com que acontecimentos incômodos simplesmente desapareçam da memória. Em suma, tamanho é o poder da propaganda das doutrinas norte-americanas que elas se impõem, inclusive, as suas próprias vítimas, e não somente a quem quer alienar.
A Nicarágua, o Haiti e a Guatemala são os três países mais pobres da América-Latina. Também são os que estão dentre aqueles que os EUA interviram militarmente, e a coincidência não é necessariamente acidental. E tudo isso acontece num clima ideológico marcado por declarações falsamente entusiásticas dos intelectuais ocidentais. Há alguns anos, a autocongratulação fazia o maior sucesso: fim da história, nova ordem mundial, Estado de direito, direitos humanos…enquanto deixávamos que atrocidades continuassem a ser cometidas em grande quantidade. Pior, contribuímos para isso de maneira ativa. Uma das proezas da civilização ocidental é tornar plausível, aceitável e esquecível esse tipo de inconseqüência brutal numa sociedade falsamente livre, e nem mesmo um Estado de utopia poderia dispor desse dom.
Organizações humanitárias, civis e religiosas, movimentos libertários ou dissidências de organizações variáveis não mereceram uma linha sequer em publicações da imprensa tradicional no ocidente nos últimos anos, à exceção de manifestações de caráter democrático, como no caso do encontro de Seattle, há poucos anos. Nesse nível do grau da cultura de massa em que ainda se acha o “gênero humano”, a reação e a revolta organizada é um meio inevitável para estender à civilização novos caminhos de humanidade. Como Kant provavelmente diria, seria um novo começo verossímil da história humana.
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