Simplicíssimo

O Código Genético da Formação de Opinião.

O Código Genético da Formação de Opinião.

"Não podemos, de pronto, destruir o governo existente ou o poder da formação de opinião, talvez não possamos amanhã impedir que sobre as ruínas dos formadores de opinião atuais e do atual governo um outro surja: mas isto não nos impede hoje, assim como não nos impedirá amanhã, de combater não importa que governo, recusando-nos a submetermos à formação de opinião e à lei sempre que isto seja contrário aos nossos imperativos de consciência. Toda a vez que a autoridade é enfraquecida, toda a vez que uma grande parcela de liberdade é conquistada e não mendigada, é um progresso rumo à anarquia.”

  Errico Malatesta 

Adotado como cartilha da mídia mundial, especialmente nos países pobres, o pensamento único neoliberal enterrou o debate de idéias e a pluralidade. A adesão ao discurso único é irrestrita e serve como mantenedor da hegemonia neoliberalista. Trata-se de um paradoxo porque o liberalismo dá grande importância ao que se chama “mercado de idéias”, o intercâmbio livre de propostas controversas como melhor meio de se chegar ao que se poderia chamar de “as melhores soluções”, mas que raramente (quase nunca) são as mais justas e eficazes para o conjunto da sociedade. Esse é um dilema até agora indigno de compreensão, e é grave: não há mercado de idéias no neoliberalismo capitalista, especialmente naquele pregado e propagado às custas de repressão ideológica no terceiro mundo. Vejamos os países sul americanos e africanos: no espaço midiático em que deveria acontecer esse processo de contraposição de diferentes ideologias, deu-se a uniformização do pensamento.

Já não há (e vale mais uma vez: especialmente nos países do bloco chamado de terceiro mundo) nem mesmo diários mais “católicos”, ou mais “laicos” como havia antigamente, ou mais ou menos conservadores, mais ou menos nacionalistas. São todos igualmente conservadores e neoliberais. Não pode haver debate de idéias e busca por novas soluções se todos os ramos da mídia compartilham o mesmo pensamento. Os jornais e demais informativos de referência nacional são tão parecidos que é comum confundi-los nas bancas, as mesmas fotos, as mesmas manchetes e, não raro, os mesmos colunistas.

O consenso, que deveria ser produzido ao longo de um complexo processo de debate argumentativo, já nasce pronto e acabado, nas matrizes de uma minoria de interesses estranhos aos da maioria da sociedade. A ideologia de todos os veículos da grande imprensa pregada no subdesenvolvimento possui o mesmo código genético, e não há, de maneira geral e representativa, opiniões de esquerda alternativas. Esse quadro serve de base documental da pauta das emissoras de tv e rádio, surgindo o discurso único que prega a inevitabilidade e a “naturalidade” do mercado liberal que resultam em arrocho dos gastos públicos, desregulamentação das leis trabalhistas e movimento de capitais para o exterior, após a privatização de serviços sociais. Resultado: aumento da desigualdade da distribuição de renda e da miséria.

Despencamos na ditadura do discurso, expressão cunhada pelo (in)suspeito ministro da economia na época da ditadura e hoje deputado estadual Delfim Netto. De formação neo-keynesiana, até mesmo Delfim espantou-se com a falta de pluralismo na mídia, logo ele que reinava como um czar durante quinze anos de ditadura. Esse é outro paradoxo grave neoliberalista: temos menos pluralismo midiático na democracia do que na época da ditadura. Havia, durante a ditadura, uma pujante imprensa alternativa, incluindo vários semanários de circulação nacional – alguns deles, como o Pasquim, Opinião e Movimento, extremamente críticos. Os próprios jornais alternativos, embora unidos na oposição à ditadura, eram muito diferentes entre si. Havia jornais anarquistas e marxistas, nacionalistas e internacionalistas, católicos e feministas.

Mesmo a imprensa tradicional que manteve com a ditadura uma relação tão complacente quanto a de uma amante passiva, divergia de políticas determinadas adotadas pelos militares, e nesses casos as criticava pesadamente. Temos como exemplo a crítica à política agrícola que levou à queda de ministro; a crítica ao AI – 5 em 69 e na crítica ao programa nuclear brasileiro, no fim da década de 70. Durante os primeiros anos da ditadura, até, digamos, meados de 68, revistas medíocres e convencionais como Visão e Veja expressavam visões bem diferentes do mundo e dos problemas brasileiros. Havia jornais sobreviventes da era populista como A Última Hora e o Correio da manhã, que criticavam ferozmente os militares, ambos fechados por ações de estrangulamento econômico.

A diversidade e a crítica, mesmo durante a ditadura, expressavam as contradições de um regime autoritário, numa época que ainda havia frações bem demarcadas da burguesia, e com interesses conflitantes. O capitalismo neoliberal unificou todas as frações da burguesia numa grande e única metafísica do negócio, num capitalismo único e global movido à exploração. No pior período da ditadura, entre 69 e 74, alguns jornais alternativos mais combativos chegaram a ser submetidos à censura prévia. E, mesmo assim, mantiveram suas posturas críticas. Até mesmo jornais convencionais e revistas também convencionais foram submetidos à censura durante algum tempo (o Estado de São Paulo, por exemplo). Na era neoliberal não é preciso limitar a crítica dos jornais porque nenhum jornal ou qualquer outro segmento da mídia adota uma linha editorial crítica. Eis mais um paradoxo preocupante neoliberal: o advento da democracia, ao invés de abrir mais interfaces de conflitos entre o social, o Estado e o capital; e aumentar o espaço e a profundidade crítica, deu lugar ao embrutecimento do pensamento e o tornou ainda mais superficial. Na era capitalista, a mídia de massa fica marcada como um caráter meramente denuncista, denúncia da corrupção a partir de uma postura moralista, cínica e que não procura, como deveria, estabelecer o vínculo entre esta mesma corrupção que denuncia e o como ela, intrinsecamente move e mantém a implantação do capitalismo neoliberal. A exploração e especialmente a alienação se dão também pela ausência de polarização na mídia. 

Falando em polarização, o que mais impressiona hoje no panorama midiático é o contraste entre a crescente polarização das sociedades e a ausência de qualquer polarização ideológica entre os veículos de comunicação de massa. E aí temos mais um dilema do capitalismo: o de uma mídia uniformemente conservadora numa sociedade claramente polarizada pela exploração e aumento das desigualdades entre as pessoas. Na era neoliberal aprofundaram-se as diferenças sociais e a miséria assumiu uma escala massiva nunca vista. Os ricos ficaram ainda mais ricos e os pobres, mais vulneráveis e expostos a condições ainda mais precárias de vida, o que conseqüentemente aumenta o mercado informal, a ilegalidade, o tráfico de drogas e de produtos; e a violência urbana. Foi nessas condições que a vida polítca no terceiro mundo tornou-se extremamente polarizada e fundamentada sobre conflitos sociais reais, por isso nasceram partidos de esquerda na América Latina (alguém se lembra do PT?) e movimentos de excluídos, como o MST que conta com mais de 200 mil militantes e mais de uma centena de acampamentos no maior país sul americano. Nas três campanhas presidenciais que ocorreram depois da instauração da democracia, houve no Brasil alternativas reais à escolha do eleitor, de um lado um candidato de direita, defendendo o neoliberalismo; e de outro um candidato de esquerda de oposição à globalização de cunho neoliberal. No entanto, a mídia assumiu em todas essas campanhas a defesa ativa das candidaturas neoliberais.

No neoliberalismo o estresse tornou-se a doença ocupacional crítica e típica dos profissionais da mídia. Um padrão mais autoritário do que nunca, que se vale de ameaças de demissões, marca hoje as relações funcionais nas redações e empresas de marketing, atingindo até mesmo as relações interpessoais. A ética jornalística desapareceu das redações e a supressão da liberdade de informar se banalizou como condição natural. Durante a transição da ditadura para a democracia, e justamente para manter o controle dessa transição e da própria democracia resultante, deu-se uma concentração das concessões de canais de rádio e tv em poucas mãos. Na esfera nacional, um único grupo de TV, o grupo Globo, passou a controlar ate 70% da audiência, com poder monopolista na capacidade de configurar o imaginário popular e exercendo despudorada e obscenamente esse poder nas três campanhas presidenciais da era democrática. Em âmbito regional, um único grupo local, ou algumas vezes dois grupos, passaram a deter o controle de toda a mídia local. Isso acontece na Argentina, Chile, Equador, países da África, não somente no Brasil. Esse é mais um paradoxo neoliberal: o da concentração monopolista, violando as leis antimonopólio. Enquanto uma fábrica de esterco (ok, mau exemplo, mas é que José Sarney passou pela minha mente), enquanto uma fábrica de sabonete, pelas leis antimonopolistas, não pode deter mais de 40% do mercado, as empresas de comunicação de massa, em todo o mundo, cruciais na formatação da democracia, violam tranqüilamente a lei e chegam a altas concentrações de mercado. O parágrafo 5 do artigo 220 da Constituição Brasileira de 1988 diz que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto, de monopólio ou oligopólio”, mas a Rede Globo tem participação societária em 32 emissoras de Tv e 20 de rádio, além de centenas de retransmissoras de Tv, jornais e revistas; o Grupo Saad (rede Bandeirantes) tem 12 emissoras de tv e 21 de rádio, o grupo SBT tem 10 emissoras de tv e 20 de rádio. O ex-presidente Sarney, cuja família controla cerca de 15 emissoras de rádio e tv do Maranhão, faz parte dos 25% dos congressistas brasileiros que são proprietários de rádio e tv, todos de partidos conservadores. Na mídia neoliberal, fala-se em nome do interesse público mas serve-se ao interesse privado.

Este é mais um dos paradoxos acerca do capitalismo neoliberal. À privatização do social, correspondeu a privatização das concessões de rádio e tv. No Brasil, o processo se deu no bojo da concentração das emissoras em poucas mãos, mãos de políticos conservadores que empurraram a ditadura goela adentro da população anos antes. Em contraposição, associações populares e sindicatos nunca receberam uma concessão de rádio ou tv. Estas concessões são usadas com o objetivo explícito de ajudar neoliberais a manter as estruturas locais de poder fundadas no clientelismo e na corrupção, em detrimento da maioria da população. Apesar de defender a atuação de agências reguladoras, para substituir a atuação direta do Estado, o neoliberalismo nunca instalou um conselho de comunicação social que deveria ser a agência reguladora das concessões e da programação.

O apoio das empresas de comunicação ao projeto neoliberal supera o grau de apoio dado pelas mesmas empresas ao projeto desenvolvimentista da ditadura militar que gerou o chamado “milagre econômico” de 68 a 72 (ou 73?). O milagre se caracterizou por um crescimento extraordinário do PIB e, portanto, da renda nacional a taxas de 10% ao ano em média, durante anos seguidos, enquanto o projeto neoliberal trouxe a estagnação econômica durante quase duas décadas, triplicou a escala de desemprego e massificou a miséria e a exclusão, estacando o universo de leitores e pessoas críticas. Exclusão social é outra expressão demarcadora da sociedade periférica na era capitalista neoliberal.

Como se explica que empresas de comunicação de massa, que prosperam quando a renda aumenta e entram em crise quando o lucro diminui, apóiem o projeto neoliberal??? Mais um dilema do capitalismo midiático liberalista dos dias atuais: A indústria de comunicação de massa está em profunda crise nos países pobres, com a queda nas tiragens de jornais, revistas e queda na publicidade (publicitários, tenham medo) fortemente endividada pelo estreitamento do mercado e invasão das multinacionais, mas ainda assim apóia com entusiasmo de líder de torcida o projeto neoliberal.

Os grupos empresariais de comunicação nos países periféricos fecharam totalmente com o projeto neoliberal dentro de uma visão que tem como objetivo estratégico associar-se com capitais estrangeiros, aceitando a condição de subordinação canina aos grandes grupos globais da mídia. Por isso, cobram do parlamento a derrubada do limite de 20% (no Brasil) à participação do capital estrangeiro na mídia, assim como a restrição ao controle por parte de pessoas jurídicas; ou seja, as empresas de comunicação periféricas planejam sua própria absorção pelos grandes grupos globais de comunicação. É o suicídio empresarial de uma burguesia congenitamente entreguista e com vocações libidinais de meretrizes subservientes. É o suicídio cultural da comunicação de massa.

Por fim, de caráter mais geral, há de se apontar o contraste entre a hegemonia completa do projeto neoliberal na mídia e a ausência de padrões dominantes para todos os demais aspectos da vida nos países pobres tratados pela mesma mídia. A mídia celebra o advento da era pós-moderna como a da morte das metas narrativas e o fim da história. Celebra a ausência de padrões dominantes nas artes, nos hábitos, na religião, na constituição da família e na sexualidade. Propõe a era da convivência dos contrários, da tolerância étnica, enfim do pluralismo em todas as suas formas; menos no modelo econômico que cristaliza atualmente a própria organização da sociedade e que cria a miséria e exploração da maioria: nesse âmbito, o capitalismo neoliberal se coloca como derradeira meta narrativa, não tolera a divergência e não admite valores que não sejam os seus. A saída aponta para a ausência da propriedade privada, tanto na mídia quanto nos demais segmentos da sociedade; e no combate ao Estado como regulador da opressão ideológica e regulamentador da exploração pelo capital. Não tenha dúvida, se alguém age como uma pessoa que sabe disso, e procura a solução, age, portanto, como um anarquista.

Rodrigo Monzani

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