Simplicíssimo

O Marquês (I)

O Marquês

por Rodrigo Monzani.

 

1.

"A minha maneira de pensar, você diz, não pode ser aprovada. E que me importa? Bem idiota é aquele que adota uma maneira de pensar para os outros! Não foi a minha maneira de pensar que provocou a minha desgraça. Foi a maneira de pensar dos outros."

MARQUÊS DE SADE
(1740-1814)

O garoto abriu os olhos. Enquanto o escuro engolia completamente a luz da única vela, ele somente pôde ver quando aproximou as mãos da face, os contornos do chapéu de arlequim, o desenho do seu sorriso satírico no baralho antigo de seu pai; e sorriu também ele, o mesmo sorriso de coringa. Naquele seu baralho, o coringa vestia-se como um marquês.

Não há no pôquer uma carta como o coringa. O Ás é a carta mais alta, mas também pode entrar nas seqüências como a mais baixa. O coringa é único, não possui naipe, muda de valor segundo a combinação de cartas que o parceiro tem na mão. O menino por um instante pensou ser coringa, assumir o valor das pessoas como se o importante da vida não fosse o fato vivido em si, mas as mensagens de seu autor, as suas jogadas, seus blefes.

Ser um bom jogador de cartas é dever de um artista, uma atitude humana transformada em virtude pelos meros gracejos de admiração dos observadores. Exige dominío de som, volume, espaço e tempo, palavra e movimento e assim como os poetas, jogadores de pôquer são meros fingidores identificados com sua própria arte, já que qualquer arte é, também, uma forma de linguagem, ainda que não necessariamente verbal.Numa mesa de jogo pode-se fazer uso da chamada licença poética, a permissão para extrapolar o uso da norma culta da língua, tomando a liberdade necessária para recorrer a recursos do uso de palavras de baixo-calão, desvios da norma ortográfica que se aproximam mais da linguagem falada ou a utilização de figuras de estilo como a hipérbole ou outras que assumem o carácter "fingidor" da poesia, afinal, um blefe perfeito era como uma rima em perfeita métrica; e aquele menino era assim um poeta, embora a linguagem poética, agora, no escuro, não lhe bastasse.

Ele continuou segurando a carta de coringa do baralho antigo, lembrando dos tempos de colheita com seu pai, do odor falsificado, mas ainda adorável das flores mortas enviadas às lojas da cidade e, brevemente, sentiu-se bem. Estava agora orgulhoso de si mesmo. E infinitamente aliviado. Pela primeira vez em muitos anos desapareceram de suas costas as câimbras que lhe deixavam tenso e os ombros cada vez mais devotamente curvados, apesar da pouca idade, e sem esforços conseguiu ficar ereto, refrescado e livre. Olhou para baixo e no meio da luz fraca e fria viu as mãos atadas da menina.

Encaminhou-se lentamente até a moça, cada vez mais perto, ficou debaixo das tábuas do celeiro, colocando-se a um passo atrás dela. Ela não o percebeu. Tinha cabelos longos e negros e trajava uma peça única vermelha sem mangas. Os braços eram muito alvos e as mãos estavam doces do suco de maçãs cortadas há pouco. Parado, o menino curvara-se sobre ela e a aspirava sem qualquer mistura, tal qual subia de sua nuca, cabelos, decote enquanto a menina sentia-se enregelar. Ela não o via, mas começou a ter uma sensação de medo, não, não medo, mas uma espécie de sentido mais aguçado das coisas, como uma antiga angústia que volta à tona pela nostalgia, um estranho calafrio. Para ela, era como se houvesse uma corrente de ar frio às costas, como se alguém tivesse aberto uma janela imaginária perto dela, feita de escuro, uma porta que levava a lugar nenhum. Perto de seus pés estava a faca que utilizara no corte das maçãs. Estava tão gélida quanto a faca quando o viu; e ele teve bastante tempo para lhe colocar as mãos em torno da cabeça.

Ela não tentou qualquer gesto, não se mexeu, não exibiu qualquer reação de defesa, não gritou. Ele não a olhou, não viu seus grandes olhos e a boca atada, pois manteve seus próprios olhos bem cerrados enquanto a estrangulava, tendo somente a preocupação de ser discreto. Quando estava morta, ele a deitou no chão e ficou ainda ao seu lado por um tempo, pois estava impregnado dela. Não queria desperdiçar nada, não queria que nada voasse pela janela feita de escuro. Primeiro tinha que fechar bem suas próprias portas interiores e, em seguida, caminhou e apagou a única vela com um sopro.

Nesse momento voltavam da cidade as primeiras pessoas e pouco depois, descobriu-se a morta. Ergueu-se uma confusão imediata, lumes foram acendidos e quando veio a guarda, o menino já estava na outra margem do rio. Guardou seu coringa, pensou no jogo de cartas, na menina e nos cadáveres que, assim como as flores mortas recentemente colhidas com seu pai, entram em rápida decomposição.

Naquela noite, o seu colchão pareceu-lhe um palácio, e o seu amontoado de tábuas, uma cena celestial. Até então ele não havia experimentado em sua vida o que era contentamento. No máximo conhecera estados extremamente raros de reprimida satisfação; e agora tremia de felicidade e, de tanta alegria, não conseguia conciliar o sono. Era como se nascesse pela segunda vez, não, não pela segunda, mas pela primeira vez, pois tinha apenas existido como um objeto, num conhecimento parco e escuro de si mesmo. Mas agora parecia-lhe que sabia quem era realmente, e este era nada menos que um gênio.

Rodrigo Monzani

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