Simplicíssimo

O Marquês (II)

O Marquês (II)

– por Rodrigo Monzani

 

2.

– Os olhos não podem conhecer as leis da natureza; por isso, não queiras atribuir aos homens o erro do espírito.”

LUCRÉCIO

De rerum natura (I a.C.)

 

1847 foi a época, uma época parada em pura aparência e saudosa de si mesma, que Bradford Allan Greenwood fundou a sua empresa Reaper Works na cidade dos ventos, no subúrbio de seus então quinze mil residentes. Naquela época havia a sudoeste do Lago dos Peixes uma boa dúzia de lojistas que espiavam atrás de suas vidraças o peso das engrenagens e do protesto dos trabalhadores, alguns campos em pânico, dentes saltados e retinas doloridas com o sol.

Naquele fim de século, pouco antes de Bradford introduzir no mercado local mais de duzentas ceifeiras mecânicas para protesto dos agora desempregados rurais, quando seu iniciante império da indústria de ceifeiras revolucionava a colheita de flores constantemente à medida em que a marca criava fama e se alargava por todos os campos de trigo do continente americano, e se começava a estender por outros países através da exportação, que viveu às margens de um lago calmo que ruminava sua insônia noite e dia, um dos garotos mais geniais e perturbados daquele tempo nada modesto em figuras geniais e perturbadas.

Naturalmente seria comum que seu nome figurasse entre os demais geniais da história, como Platão, Darwin, Nietzche ou Einstein, mas se o nome daquele garoto Willian Granier não consta ao lado destes monstros e se perdeu no esquecimento subterrâneo de suas vítimas assassinadas, isto certamente não aconteceu porque Will deva sua genialidade a apenas uma modesta cota da inteligência destes outros gênios, mas sim porque a sua ambição reinava em locais que não deixam sequer respeito nas poeiras da história: os fugazes salões de carteado. Ademais, Willian Granier era um garoto sombrio, um desses homens das trevas difamados em tremos de arrogância, imoralidade, desprezo à raça humana e impiedade, características que logo o transformariam num dos maiores jogadores de pôquer daquela cidadela silenciosa, lívida, mas agora poluída devido às invenções mecânicas de Bradford.

Foi ali, num dos campos de Bradford, que Will nascera no dia mais escuro do ano. Era um dia quente onde reinava o odor das flores colhidas por seu pai, dos melões podres no lixo e dos animais queimados para as refeições. A mãe de Will, que assim como seu pai trabalhava na colheita antes das ceifeiras mecânicas, sentiu suas dores e pensou querer que tudo já tivesse passado, que suas dores se perdessem levadas pela brisa ou se trancafiassem em seu ventre; mas não foi assim. Ela era uma mulher linda, cheia de sensações externas, mas dessas que utilizam a sensibildade para defesa, e não se tornam fáceis de chorar ou demonstrar fraquezas do espírito. Possuía um belo sorriso, olhos longínquos e perfeitos e, fora a sífilis que pouco depois do nascimento de Will a levara, não possuía doenças graves.

Quando as dores do parto a perfuraram, ela se curvou entre os trigos, esperou sozinha e em silêncio; então cortou com o facão de trabalho o cordão umbilical do Will recém-nascido. Sentiu-se ainda sóbria, mas logo em seguida, por causa do calor e do mal cheiro que apenas percebia como um anestésico natural, como um campo de orquídeas ou uma pequena sala repleta de rosas, ela desmaiou e se perdeu, imersa no trigos com seu facão na mão. Ela segurava o facão, não o filho.

Naquele exato momento, algo definiu o caráter do menino Willian Granier: para sobreviver, sua alma não precisava de quase nada. Nada do calor materno para a vida, nada da dedicação, delicadeza ou amor; enfim, toda a eficiência e simplicidade que bons sentimentos trazem a uma criança primogênita foram dispensados no caso de Will. Ou ao menos o pequeno e franzino bebê tinha inconscientemente tornado tudo supérfulo e descartável numa fração de poucos segundos, inundado em sangue e líquido fetal no meio daquele campo quente e escuro de trigo. Ele abandonara tudo apenas para poder sobreviver, pois se exigisse um mínimo de cuidado e carinho, certamente pereceria; abandonara a reação normal e comum do mundo, decidindo, ao seu nascimento contra o bom e, paradoxalmente, a favor de viver. Caso morresse, Willian Granier teria poupado a vida de inúmeras de suas vítimas daquelas terras, mas ele não possuía a humildade que é necessária até mesmo para morrer, e decidira-se pela vida por pura teimosia.

Como se pode inferir, o garoto não se decidiu como se decide um homem racional, usando conhecimento e experiência para tanto. Will decidira-se pela vida de modo instintivo, como se para ele fosse natural não morrer, assim como uma semente jogada e esquecida na terra decide germinar e frutificar numa árvore.

Ou, talvez numa pobre analogia mais adequada ao seu futuro caráter, Will decidira-se como um verme, ao qual o mundo nada mais oferece senão uma espera quase que permanente. E aquele pequeno e horrível verme, que possui formas diversas, mas sempre imperceptível ao seus exterminadores naturais, oferecendo às externidades a menor superfície possível, nada deixa fluir de si. Will não chorou, se fez invisível como um verme para que ninguém lhe pisasse a cabeça e, recolhido em sua solidão fetal, cego, surdo e mudo, alcançando apenas as entranhas de sua mãe desfalecida, ele esperou o momento adequado para parasitar sua presa e então, agarrar-se a oportunidade vital. Quando seu pai veio ao socorro da mulher, vendo apenas a mãe de seu filho desenganada no meio da mata, o bebê Will se pôs sentado, quieto, com olhos abertos sem nada enxergar e puxou de maneira fraca o cordão umbilical cortado, chamando para si a atenção preocupada e alarmada do seu pai, que levou um susto ao ver o filho ali, sozinho, indefeso com os olhos repletos de sangue e o corpanzil raquítico, quase que esperando a carcaça de algum animal para parasitar.

Gritos, confusão, multidão de rurais parada em círculo de olhos incrédulos e implorando ajuda. A mãe continua com o facão na mão e, lentamente, recobra os sentidos durante a tarde cada vez mais escura.

Willian Granier estava a salvo e fora tratado a início com banho no riacho e caroços de nectarinas. Após um breve sono inconstante, sua expressão era glacial e submissa, campacta e densa como de sua mãe, mas foi o pai que lhe trouxe seu primeiro contato com as imagens do mundo: um jogo de baralho antigo, com 44 cartas. O jovem Willian percebeu uma enorme multiplicidade no carteado, além da, para ele, inescapável beleza irresistível das cartas. E como todos os demais gênios da história, aos quais é necessário apenas um átomo errante para lhes construir um caminho reto dentro da inconstante espiral de suas almas em caos, Will não se desviaria daquilo que passou a ser reconhecido como o direcionamento de sua vida, de toda sua externidade virulenta. Com o tempo, um breve tempo, se tornou claro para ele por que se atinha de modo tão persistente e tenaz à vida: tinha de ser um jogador de cartas. Mas não lhe bastava se tornar um jogador de pôquer. Willian Granier se tornaria o maior jogador de pôquer que já existiu.

Rodrigo Monzani

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