O Marquês (III)
– por Rodrigo Monzani
3.
“Até em sua frieza se mostrou amável. Apartou sua mão da dele, mas deixou a sensação de uma pressão comovedora, e tão branda, e leve, tão leve, que, para a mente, isso era mais uma dúvida.”
Don Juan
Alexandre Dumas, 1831
Sentado sobre um tronco podre ao sol de março, visto claramente, Will nada possuía que fizesse medo. Em sua juventude não era especialmente diferente, grande ou forte, embora, herança dos traços maternos, se destacasse por ser belo. Não era agressivo, nem irascível, não traía a escassa confiança que lhe depositavam e não provocava.
Só começou a andar aos quatro anos, e falou sua primeira palavra aos cinco, que lhe aparecera num momento de súbita excitação acompanhada pelo cheiro, “peixe”, quando o peixeiro subia a rua das ladeiras aos gritos e com o indefectível tilintar de sua sineta anunciava sua mercadoria. Adiante, suas palavras foram “curral”, “valete”, “trigo”, “copas”, “espadas”, “curinga” “mamãe morreu” (antes mesmo de “mamãe”) e “Aníbal”, este último era o nome do coveiro que trabalhava no Convento Irmãs da Cruz, onde sua mãe fora enterrada quando a sífilis a levou da cidade dos ventos.
Willian preferia palavras principais à formar frases corretas e inteiras. Quando tinha fome, apenas dizia “pão” ou “maçã”, quando saía de casa dizia “andar” e somente se dava ao trabalho de articular frases completas quando elas denotavam seu interesse pelo jogo de baralho, suas dúvidas sobre regras de pôquer ou quando alguma jogada num salão de carteado lhe chamava a atenção, embora isso raramente acontecesse, sendo mais frequente nos primeiros anos de sua vida. O que ele aprendera nesses salões lhe estava muito claro: o homem não pode confiar no homem e mais – se tais homens, principalmente quando a desgraça deve chamá-los severamente ao cumprimento de uma vida na verdade e pureza, se abaixam até o charlatanismo, o que esperar do resto da espécie?
Willian Granier, silenciosamente, sabia a resposta: nada, senão blefes. Talvez por isso se isolara em sua existência juvenil e aperfeiçoara a arte de blefar como um mestre durante toda sua vida, pois sua verdade existia apenas na mentira, sua religião era o jogo de aparências, sempre os vitrais e nunca as palavras. Não era o caso de maldizer a hipocrisia, antes o contrário, se sentia mal na ausência da mentira, e sinceramente a considerava como verdade, um reino de aparências onde num infinito galpão jazia seu coração aleijado e maldoso, para então sair para o mundo coberto de impiedade e desprezo, seu verdadeiro talento, sua vocação e sua coragem. Assim, Will permaneceu distante e solitário.
Sabe-se daqueles que procuram estar só: santos, profetas, penitentes ou fracassados, retiram-se para a mortificação com a solidão e através dela se penitenciam. Agem na crença de alcançarem uma pura vida ou agradar a um ente superior, esperando durante suas existências terrenas que lhes advenha uma divina mensagem; mas nada disso se adequava ao caso de Will. Não se preocupava em purificar-se, penitenciar-se ou agradar a Deus. Will não tinha nada parecido com Deus em suas intenções. Granier não esperava qualquer inspiração do alto, mas mantinha-se isolado do mundo para a própria satisfação e, assim, banhava-se de sua própria existência não desviado por nada mais, senão o treino com cartas de baralho. Quando jovem escondia-se em grutas com um mínimo de luz, grutas de rochedos com seu cadáver, como o cadáver de si mesmo, mal respirando, o coração mal batendo, e no entanto, vivia tão intensa e desvairadamente como nenhum farrista jamais viveu nos salões de Londres ou Paris.
A satisfação estava nas cartas, palco de seu delírio, seu império interior que o autonutria, se deparando com ases, valetes, reis e rainhas que manuseava e pensava como irmãos que nunca teve, ou como pessoas de bem que ele próprio pudesse manusear. Para o certo estado de seu ânimo, invocava as regras dos primeiros jogos de cartas, os mais antigos, calculava sozinho e no escuro a probabilidade de pegar a carta desejada, como construir, através de várias rodadas com as cartas menores, uma mão que pudesse derrotar seu oponente (que, desvairada loucura, no escuro, era ninguém menos que o próprio Will!) e a partir da revelação, quais poderiam prolongar seu jogo, aumentando as apostas para enfim dar a cartada final, um Straight, um Flush, um Full House, uma quadra ou um Royal Flush, o golpe fatal num retrato de sua ira interior que ele externava através do vapor de sua respiração, nada mais.
Encantava seu espírito estudar a crença popular sobre a data em que se jogou o primeiro similar ao pôquer. O Imperador Chinês Mu-Tsung teria apresentado a sua esposa, na noite de ano novo, um jogo baseado em “domino cards”- as cartas como conhecemos hoje ainda não haviam sido inventadas. Lia registros arqueológicos que atestam que mesmo antes de Cristo os Egípcios se tornaram conhecidos por praticarem jogos com cartas. Descobrira que na Pérsia, a “Ganjifa” ou “Carta do Tesouro” era utilizada para a prática de uma grande variedade de jogos que incluíam apostas. O baralho Ganjifa consistia em 96 cartas extremamente elaboradas, geralmente feitas de um papel obtido a partir de finas lascas de marfim ou madeira preciosa… esses eram os estudos de Granier.
Com o tempo, Willian passou a pagar prostitutas para o acompanharem nas grutas de seus treinos, das quais muitas lhe negavam o convite. As mais desesperadas, mal pagas para o passeio, passavam a noite estudando as feições de Granier, para depois lhe contar se percebiam sua mentira, seu blefe, se suas feiçoes o traíam e denotavam seu jogo através dos olhos. Willian as pagava para saber opiniões sobre suas expressões num jogo com as mais variadas combinações de cartas, e também as estudava, dando cartas àquelas que sabiam o pôquer (“- Boa noite, senhora, poderia me dizer se jogas cartas, sabes as regras do pôquer?”), para provar a si se era capaz de decodificar um mau blefe, uma mão para se apostar ou sair do jogo. Certa feita, guardara seu dinheiro por três meses e pôde pagar três prostitutas para uma mesa de carteado numa gruta afastada. Não lhe agradava a idéia de começar a jogar nos salões, e jogaram a noite inteira, os quatro, o primeiro jogo da vida de Granier.
Willian sentira-se satisfeito e, uma semana depois de mais treinos, decidira jogar num salão. Àquela ocasião, contava com onze anos de idade.
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