Simplicíssimo

Carta a um filho

“…não, não me pediste, meu filho, para nascer, não… foi apenas um desejo meu, um desejo muito antigo, daqueles desejos de me tornar num Homem plantando uma árvore, escrevendo um livro e fazendo um filho… sim, foi um desses desejos íntimos que, na companhia da mulher que te deu à luz, eu te dei vida, uma vida desejada e acompanhada até aos mais ínfimos pormenores… é verdade, foste desejado com muito carinho e muito amor… não um amor carnal para gerar um filho mas amor de pai que pretende ser pai… mas tu não foste ouvido, não o podias ser… mas sempre pensei que a vida nasce sem que a gente a provoque, ela nasce pela simples razão de que tem de ser… e num determinado dia, rasgando as carnes de tua mãe, vieste beijar a luz deste mundo que tão diferente é daquele em que, durante 9 meses, te escudaste das maldades que nos rodeiam e nos provocam náuseas por não sabermos como evitar tais momentos… esses 9 meses de gestação prodigiosa que somente Deus pode conceber e permitir, foram meses de acalentadas esperanças pelo dia tão ansiosamente esperado… 9 meses de fortuna espiritual por te saber ali, por te saber vivente e prodigiosamente sobrevivente num mundo perfeito que somente se conhece mas não se sente pois não nos lembramos nunca de como se passaram esses momentos “lá dentro”… e quando, então, rasgaste as carnes maternas eu chorei de alegria por saber que eras algo meu, algo vivo, materializado, que tinha vindo de mim e se transformado dentro do ventre materno… sim, chorei de alegria por te saber ali a meu lado e por saber que estava a teu lado… mal te pude pegar, pois tinha medo de te magoar; não queria macular com as minhas mãos aquilo que estava imaculado, pois naquele momento nenhum pecado poderias ter cometido pois estavas ali por vontade suprema de Deus Pai e que ninguém me diga, que ninguém me ouse dizer que um recém-nascido vem maculado por qualquer tipo de pecado… Deus te criou por meu intermédio no ventre de tua mãe… nasceste por vontade Dele, logo não cometeste qualquer pecado e abençoados todos os que nascem por vontade única de Deus Pai… os anos que se seguiram foram anos de alegria e anos de espanto pelas habilidades que davas a conhecer aos que te rodeavam de amor e carinho… e numa criança te tornaste e como criança cresceste para o mundo…  percorreste todos os caminhos normais e habituais que qualquer criança costuma percorrer: os trambolhões, os choros, as maleitas, a escola… a entrada pela porta da vida prática de qualquer ser humano… e muito cedo num homem te tornaste, pelo abandono forçado que tive de te proporcionar por razões que não te diziam respeito e das quais não eras responsável nem sequer tinhas nada com elas… então, porque razão haverias de sofrer pelos erros cometidos pelos outros, especialmente pelos dos teus progenitores?… que pecado cometeras tu para pagares pelos erros dos outros?… que mal fizeras ao mundo para ele te responder dessa maneira?… que tinhas tu a ver com as agruras da vida de teus pais se não eras a origem desse mal?… por que haverias de pagar por erros não cometidos?… não te sei responder, meu filho… mas que pagaste… e bem… lá isso pagaste… e esse preço faz parte da minha dívida para contigo… dívida que jamais poderei pagar, pois por mais que te ame, jamais te pagarei o sofrimento que te provoquei… e esse preço faz parte da minha angústia para o resto da minha vida, pois por mais que te ame, jamais aliviarei a dor que sinto no meu peito… e esse preço faz parte integrante do meu dia a dia, pois por mais que te ame, jamais sairá do meu peito a dor da dor que te dei… não te peço perdão pois não sou digno dele… não te peço que me releves todas as minhas faltas… não te peço que me compreendas… não te peço sequer que entendas… peço-te apenas que acredites na dor que vive comigo…”
teu pai.

Joaquim Nogueira

Joaquim Nogueira

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