É certo que alguém de sua envergadura moral, investido da autoridade esotérico-telúrica com que foi agraciado pelo Olimpo, jamais deveria ser visto por aí de testa franzida, espinha arriada e olhar embaçado, sem o brilho via-lácteo de outrora. Não obstante, é assim que o Duña vem se apresentando a quem o vê em seu vagar errante por entre hortas e granjas da nossa zona rural, a esmagar rabanetes e pintinhos de um dia.
Decididamente, este guardião das verdades eternas há muito não é mais o mesmo. Eu, que tenho o privilégio de privar de sua intimidade, habitué que sou dos longos serões na sua choupana, afianço-lhes que a situação assim se configura e tende a agravar-se. Tantos são os pedidos de autógrafos e fotos com criancinhas ranhetas, as prescrições de rezas-bravas, os conselhos, unguentos, bençãos, imposições de mãos sobre feridas e aleijões que já não lhe resta tempo nem de remover discretamente uma cera do ouvido, quanto mais de usufruir de reparador banho de imersão nas Thermas ou de deliciar-se com duas ou três bagas de jaca ao molho barbecue, receita de família que o mestre tanto adora preparar e deglutir.
Tenho cá para mim que seu lado humano clama um tanto pelo ócio criativo a que os comuns dos mortais têm direito. Coisas triviais como coçar uma frieira, dar umas baforadas em seu cachimbinho de jacarandá olhando o firmamento ou trocar um dedo de prosa com seu dileto amigo Silas, discípulo desgarrado e hoje carteiro em vias de se aposentar.
O Duña também é gente, é bom que não esqueçamos. De carne e osso se apresenta à pecadora humanidade, que lhe ergue bustos sem cessar, de bronze e mármore de Carrara, nas praças das grandes, pequenas e particularmente das médias cidades. Talvez a causa do desalento seja faltar ao Oráculo um superior, um outro Duña ainda mais onipotente em quem se espelhar para inspirar seu sacerdócio. Imaginem vocês o quanto deve ser solitário amparar a todos e não poder lançar-se ao colo de quem quer que seja para um providencial cafuné. Ou ter de aturar um arrastão de sacripantas, batendo à sua porta às 3 e meia da madrugada, ávidos por um palpite para o próximo sorteio da Mega Sena acumulada.
É hora de retribuir, ao fulgurante ser duñesco, uma centésima parte das bem-aventuranças e dos casos instantâneos de cura de que nos servimos a um simples toque na sua túnica, nos bons tempos em que era moço e com a longa barba ainda ruiva. Não deixemos que a esplendorosa criatura renda-se ao poço da depressão incapacitante, que nos privaria irremediavelmente dos borbotões de enunciados, teoremas e máximas que há gerações jorram de sua boca para influenciar os destinos do planeta. Sugiro que o deixemos em paz nas suas meditações fecundas, para que dessa inércia restauradora ele ressurja em seu viço de líder espiritual. E para que possa, novamente, dirimir as indagações comuns aos gurus de sua estirpe: Qual o sentido da vida? De onde viemos? Para onde vamos? Por que os jalecos dos mecânicos irlandeses apresentam mais manchas nos cotovelos que os de seus colegas hondurenhos?
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