– E aí, conterrâneo, começou cedo hoje ?
– Fala, comendador ! Sentaí pra tomá uma branquinha.
– Dá não, vou passar lá na feira pra patroa …
– Tá de sacanagem ! Tá virando pau mandado de mulher agora ?
– Óia, rapá, não fala assim, não. Se eu num trazê nada, num tem almoço. E eu já tô tomando umas e outras lá em casa, só no limão …
– Então senta o rabo que a gente entorna a saideira, também vou picando a mula.
– Se é assim tá bom, cumpadre. Tá beliscando o quê aí ?
– Uma moelinha, de leve. Ô, baixinho, traz mais uma porção no capricho. Não esquece do pãozinho. E mais duas caninha também. Ah, e uma cerva pra rebater.
– Mas e aí, cumpadre, que qui tu conta de novo, tudo certinho? As criança, dona Chica ?
– Vai levando, vai levando. Nem te conto o que rolou outro dia, maior danação … E você, tá ainda trabalhando pro Inácio ?
– Tô mais não. Tive um problema brabo lá, fiquei puto. Eu saí e ele ainda ficou me devendo uma grana.
– Porra, tu tá brincando, logo o Inácio ? Gente boa pra cacete, conheço a família há mais de dez anos …
– Pra tu vê, eu também fiquei espantado. Achei uma baita sacanagem. O problema é que desde que o Elimar entrou com ele de sócio, eu não tive sossego. Só crocodilagem …
O homem pára por uns instantes, pensativo. Pede mais duas doses de cachaça e por fim responde, mudando o tom:
– Tu sabe que o Elimar é meu afilhado. Nosso conterrâneo, inclusive …
– Tudo bem, não se ofende. Eu tenho intimidade contigo pra poder te falar, mas me deram uma puta sacaneada.
– Mas conta aí … o quê que houve de tão grave ?
– Eu dei uma de otário, só isso. Trabalhei que nem um corno, mais de três meses, vendendo aquelas merda daquelas roupa, aqueles sapato … Rodei mais de cinquenta barraca, tu tinha que ver só. Conheço todo mundo na feira – tu fala meu nome e na hora qualquer um sabe quem é. Acabei fechando pedido com uma porrada de gente.
– E aí ?
– Aí que não me pagaram nem metade da comissão combinada, só isso. E mermo assim demorou um tempão. Fiz papel de babaca com os filho-da-puta …
– Peraí, peraí ! Filho-da-puta, não ! – diz o homem, colocando o dedo em riste e demonstrando contrariedade.
– Com todo respeito, cumpadre, com todo respeito. Baixinho, vê mais duas aqui. Num quero ofender a dona Corália, Deus que a proteja. Ela anda até meio mal, fiquei sabendo. Filho-da-puta é o modo de dizer, a mãe num tem nada a vê com as sacanagem dos filho … Mas mudando de assunto, como é que tá dona Chiquinha, que tu não falou direito ?
– Porra, não me pergunte por Francisca, que eu tô por aqui com ela. Quase me botou pra fora de casa anteontem …
– Mas que que tu andou fazendo pra ela te tratar assim ? Tu também não é fácil …
– Nada demais. Só que ela andou fuçando por aí, com um e com outro, e disseram que eu tava comendo a Martinha, aquela escurinha lá de baixo.
O outro parece não gostar do encaminhamento da conversa. Vira a sua dose de uma só vez, pede pra completar mais duas e pergunta:
– Mas então era verdade … Tu tá saindo com ela mesmo ?
– Fica na sua, cumpadre, fica na sua. Mas aquela neguinha fode é muito, tu tem que ver só !
– Porra, tu num sabe que eu namorei ela, queria até compromisso firme ? Foi pouco tempo, rapidinho. Logo antes de eu me achegar na patroa, ela embarrigar …
– Que é isso, tu é meu irmãozinho ! Entre a gente não tem isso. Então tu sabe que aquilo ali é uma perdição mermo …
– Não sei é de porra nenhuma, que eu nem cheguei a ter intimidade com ela. Te falei, não deu nem tempo.
– Como não deu tempo, cumpadre ? Eu já cheguei passando a rola nela ! Não acredito que tu ficou só de beijinho e abraço. Marcou bobeira !
– Tu quer dizer o que com isso, porra ? Tá dizendo que tu é mais homem que eu ?
– Pára com isso, mermão ! Não precisa gritar no meu ouvido que eu não tô surdo ! Eu não falei nada. Ô, baixinho, completa aqui pra gente.
– Aí, precisa completar porra nenhuma não pra mim, que eu tô de saída. Quanto é que eu tô devendo aqui, baixinho ? – diz o homem, metendo a mão no bolso de trás da calça.
– Sossega aí, mermão ! Vamos tomar a saideira. Ficou putinho assim por causa da neguinha, é ? Pensei que não valia isso entre a gente.
– Saideira é o caralho, que eu tô cheio de pressa. Tomaí ! – o homem então procura o dinheiro nos quatro bolsos da calça. Por fim, joga algumas notas amassadas no balcão.
– Aí, faz o seguinte: deixa essa porra pra lá que eu acerto ! A próxima é tua.
– Tá querendo tirar onda comigo, acha que eu não tenho dinheiro ? Tá me chamando de fudido ? Presta atenção !
– Ô, conterrâneo, tu tá muito nervosinho hoje ! É melhor tu ir mermo pra tua casa esfriar a cabeça, porque eu também não vou ficar ouvindo falação, nhém nhém nhém no meu ouvido ! – grita o homem, abrindo e fechando a mão próximo à orelha.
– Tá me expulsando ? Que merda é essa ? Se eu quiser eu fico aqui é o dia inteiro, e que se foda você !
– Porra, tu tá de brincadeira comigo ! Faz o que tu quiser e não me enche o saco, que eu já tô perdendo a paciência contigo !
O homem pede uma cachaça só pra contrariar, vira em dois goles, e prepara a resposta para seu interlocutor:
– Vou me embora mermo, porque tenho que ganhar a vida. Num fico o dia inteiro de bobeira, vivendo de favor …
O outro homem parece profundamente ofendido com esta provocação.
– Como é que é, seu filho de uma puta ? Tá me chamando de vagabundo ?
– Não chamei é de porra nenhuma, você é que deve de tá se assumindo !
– Olha aqui, se eu não te conhecesse há um tempão, inclusive o teu irmão Clodoaldo, que sempre foi gente fina comigo, eu te enfiava a porrada aqui mermo !
– Pois então pode vir, cai dentro que eu quero ver ! – o homem grita, enquanto pega uma garrafa de cerveja vazia no balcão, quebra seu fundo na quina e a aponta para o outro homem. O balconista tenta intervir, assim como alguns pinguços. Mas os dois pareciam antigos desafetos, tal a disposição com que partiam para a contenda.
– Seu frouxo de merda, nem na mão tu sabe fazer, né ? Então vem aqui, filho de uma égua arrombada ! – o homem arranca uma faca de serra da mão do baixinho, que cortava um pão para servir com carne assada em uma mesa próxima.
– Tu vai é ver quem é que é frouxo, cabra safado !
O homem parte com a garrafa, o outro se afasta. Erra o primeiro golpe, mas insiste, conseguindo ferir o oponente de raspão na barriga. Entretanto, perde o equilíbrio e cai de bruços em cima de uma das mesas de madeira. Aproveitando a oportunidade, o outro contra-ataca. Parte para cima do oponente com a faca pontuda, erra, puxa rapidamente. Na segunda investida atinge o adversário três vezes seguidas – duas nas costas e uma na mão, atravessando-a e prendendo-a na madeira.
– Tá vendo, seu cabrão, como que tu é um merda abusado ? E aí, o que é que tu tem pra me dizer agora ? Vamos, diz, porra ! Tu não é homem pra cacete, não é macho ?
– …
– Fala ! Fala alguma coisa, seu bosta ! Reage, porra !
– Eu comi ela… Ai, porra, tá doendo pra caralho ! Comi muito ela, sabia ?
– O que que tu tá dizendo, bundão ? Pára de chorar e finge que é homem !
– Ai, cacete, tá doendo … Comi ela, passei a pica na Francisca, tua mulher. Vai dizer que tu nunca desconfiou ? Aquele sinalzinho na virilha, lambi tudinho por ali … – o homem, apesar da dor, muda sua expressão por segundos e faz uma careta depravada.
– O que, homem, que que tu tá dizendo ? Repete, porra, vai !
– Ai, meu Deus ! Deixa eu sair daqui, porra !
– Fala, desgraçado, tu ofende a honra de um homem e quer ir embora ? Desembucha ! – o homem então levanta a faca um pouco, apenas o suficiente para desprendê-la da mesa, e roda três vezes dentro da ferida da mão do outro, que se contorce.
– Pára, por favor, eu falo o que tu quiser ! – diz o homem, chorando de dor.
– Então continua, porra !
– Não foi culpa minha, ela tava puta contigo ! Ai, deixa eu sair, pelo amor de Deus !
– Tu se deitou com ela mermo ? É verdade o que tu tá falando ?
– É …
O homem pára e pensa por uns instantes. Arranca a faca da mão do homem, que se contrai urrando. Em seguida, abre a carteira, retira mais que o necessário e chama o baixinho.
– Tomaí, é pra cobrir o prejuízo !
Ele parte com o instrumento cortante na mão, abandonando o tumulto do bar. Anda rápido, mas sem transparecer o desespero que consumia sua alma. Em três minutos, está defronte à porta. Respira fundo, e dá três batidas fortes com a palma da mão aberta.
– Chica, minha catraia, abre aí que a gente tem que conversar !
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