um homem olha suas próprias mãos enquanto move-se a esteira sobre a qual ele se debruça de quinze em quinze segundos para girar um parafuso após outro. a menos de um quilômetro dali, um outro homem suspira amaldiçoando os papéis sobre os quais se debruça de quinze em quinze segundos para assinar seu nome sobre uma linha negra. no mesmo instante em que as sirenes assustam um gato de nome ramundo, as pombas defecam e recolhem-se para seus ninhos, uma criança nasce, uma lagarta passeia nos cabelos de uma menina, e a sombra da figueira no quintal de um asilo projetada na janela principal forma um ângulo de noventa graus em relação ao solo.
as mãos, suadas sob uma grossa luva de borracha eram vaga lembrança num parque onde aprendera com seu pai a fazer barcos de papel. as folhas sobre a mesa, lívidas e mortas, representavam para o outro homem sua porção mais viva, sua carne: a consistência de seu ser era, afinal, medida pelo volume de papel acumulado nas prateleiras de seu escritório.
o nome da criança que acaba de nascer naquela ambulância é raimundo. um pomba abocanha uma lagarta, e quando a sombra da figueira marca o exato instante em que o relógio cuco da sala do asilo marca seis horas, uma menina volta correndo para casa chorando e remexendo nos cabelos em pânico.
as mãos do homem despedem-se das luvas e voltam para os bolsos.
os papéis voltam para os envelopes reutilizáveis de correspondência interna do banco.
raimundo tem exatos 3,5Kg, e seus pais estão contentes.
a menina conta para a mãe que uma pomba roubou sua lagarta.
uma senhora fecha seu livro de orações e pensa em goibada.
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