Eva (parte I de II)
– por Rodrigo Monzani
– por Rodrigo Monzani
Quarta-feira de cinzas, mistérios gloriosos do rosário. As pétalas desmanchadas dentro do intrépido silêncio da sala, caídas desajeitadas perto da soleira entre a porta e a única escada que restou, demonstravam que o tempo passara assim como o próprio silêncio, solene e discretamente; e a razão quase cínica daquela discrição era o disfarce da loucura de Eva. Aquele sentimento de evasão no tempo em relação aos fatos cujas origens se perdiam nos excessos e deficiências que a marcavam, certamente era aquele sentimento que a levara da discrição à loucura.
Seus agrados eram a vida e os novos relevos das partituras clássicas escritas in-octavo: Vivaldi, Bach, Rameau, Amadeus Mozart… baladas que a conduziam por uma sugestão sensível e perversa de prazer, desordenando a imaginação, fazendo dela aquilo que não se via, mas que na verdade ela era. O alívio daquela sinestesia, seu abandono e fervor nunca se perdiam para sempre, como se ficassem sacralizados em seu íntimo intolerável e a afastasse de sua existência penosa e de suas improvisações cotidianas que a esquadrinhavam numa existência aparentemente sem sentido.
A sua casa, como um todo, causava uma impressão dolorosa de desolação com os jornais velhos e úmidos que se amontoavam nos degraus de entrada e na varanda de madeira cinzenta, as janelas que se assemelhavam a olhos vazios de insuportável tristeza. No jardim, uma carrinhola enferrujada ao lado de pedaços de troncos podres cintilavam apreensão.
O sótão, iluminado por uma lâmpada nua de luz verde, revelava em muitas obras de arte antigas, de exaltada inspiração e mais luminosidade do que a própria lâmpada, uma atmosfera distinta do vapor pestilento e místico que se esgueirava entre os móveis de caserna e nas portas de estranho silêncio daquela edificação.
À noite, numa das caixas do sótão, Eva encontrou fotos antigas, de três anos antes: esperando o almoço no sofá, a mãe Isabel enxugando as mãos no avental… fotos em preto e branco coladas com fita branca em folhas enormes de capa lisa… ela mesma, de malha e cabelo preso, abraçada a Luize Mazari, uma garota italiana (melhor amiga) e uma outra menina de sapatilhas desamarradas e nariz vermelho olhando para o lado…
Hematita: para os sentimentos de não conseguir se defender;
Jaspe Sangüíneo: para os que exigem afeição inquestionável;
Malaquita: para os que lutam em demasia para controlar sua realidade;
Opala: para agitação reprimida devido à tentativa de resistir a qualquer forma de estimulação;
Dolomita: para a falta de desenvoltura ou medo de fracassar;
Rodocrocita: para exaustão devido à frustração.
Eva admirou a dançarina toda vestida de rosa e com cabelos negros lisos esvoaçantes desenhada na tampa da caixa que segurava apoiada nos joelhos. No canto havia os dizeres: “Pertence a Isabel O´Neall”. No verso do papel que envolvia as pedras, havia um endereço: “Galvani Street – 446 (bata na porta XIX)” e Eva tremeu quando o brilho das pedras refletiu de maneira estranha num espelho aninhado no canto da parede. Ao seu lado, havia um arranjo de flores murchas e empoeiradas em um vaso repleto de pequenas rachaduras, e ela percebeu pela primeira vez que naquele vaso também podia-se ler o número XIX em algarismos romanos. Aterrorizada, procurou por uma lanterna, desajeitada no meio da luz fraca e quando a encontrou, uma sensação doentia se ergueu a seu redor: todos os quadros do sótão possuíam uma assinatura: XIX.
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