Simplicíssimo

Eva – parte I de II

Eva (parte I de II)
– por Rodrigo Monzani

“Ao enterro de uma folha morta/Dois caramujos se dirigem/Suas conchas vestem luto/E um véu negro cobre as antenas/Prosseguem noite adentro/Uma linda noite de outono/Mas quando finalmente chegam/Já é primavera/As folhas que estavam mortas/Ressucitam todas/E os dois caramujos/Ficam bem desapontados/(…)/Mas no céu bem lá no alto/A lua vela por eles.”
Jacques Prévert

In: “O Dia de Folga”

Quarta-feira de cinzas, mistérios gloriosos do rosário. As pétalas desmanchadas dentro do intrépido silêncio da sala, caídas desajeitadas perto da soleira entre a porta e a única escada que restou, demonstravam que o tempo passara assim como o próprio silêncio, solene e discretamente; e a razão quase cínica daquela discrição era o disfarce da loucura de Eva. Aquele sentimento de evasão no tempo em relação aos fatos cujas origens se perdiam nos excessos e deficiências que a marcavam, certamente era aquele sentimento que a levara da discrição à loucura.

A beleza constituía sua única pureza, embora a vaidade se esvaísse entre seus olhares azedos e reluzentes através dos olhos cor de cobre. Não era de falácia, conversava apenas o necessário sempre respondendo às perguntas de meninas de cores mais vivas, desprendendo seu andar incógnito e clandestino, como se seus passos seguissem o itinerário de uma poesia nada romântica. Seu universo era noite, silêncio e imobilidade, a escuridão secreta dos corações batendo rapidamente nos seres mudos e aterrorizava sua insólita condição humana resignada aos cuidados de um Deus que alternava tempos de suma discrição com algumas velozes manifestações de interesses paternais.
Seus agrados eram a vida e os novos relevos das partituras clássicas escritas in-octavo: Vivaldi, Bach, Rameau, Amadeus Mozart… baladas que a conduziam por uma sugestão sensível e perversa de prazer, desordenando a imaginação, fazendo dela aquilo que não se via, mas que na verdade ela era. O alívio daquela sinestesia, seu abandono e fervor nunca se perdiam para sempre, como se ficassem sacralizados em seu íntimo intolerável e a afastasse de sua existência penosa e de suas improvisações cotidianas que a esquadrinhavam numa existência aparentemente sem sentido.

Dormindo ou acordada, Eva via o mundo como um jogo ardiloso: cenários mutantes, ecos e vazios, luzes refletidas. Tudo sempre escorrendo como o sal entre dedos entorpecidos. O que era aquela expressão de humanidade doentia que tanto a oprimia e a prejudicava mortalmente? Que visões se esqueiravam porta adentro de sua mente, pelos corredores de sua casa, do teto ao assoalho, do jardim morto ao calçamento de pedra velha e desgastada, cinza e discretamente aterrorizante?
A sua casa, como um todo, causava uma impressão dolorosa de desolação com os jornais velhos e úmidos que se amontoavam nos degraus de entrada e na varanda de madeira cinzenta, as janelas que se assemelhavam a olhos vazios de insuportável tristeza. No jardim, uma carrinhola enferrujada ao lado de pedaços de troncos podres cintilavam apreensão.
O sótão, iluminado por uma lâmpada nua de luz verde, revelava em muitas obras de arte antigas, de exaltada inspiração e mais luminosidade do que a própria lâmpada, uma atmosfera distinta do vapor pestilento e místico que se esgueirava entre os móveis de caserna e nas portas de estranho silêncio daquela edificação.
À noite, numa das caixas do sótão, Eva encontrou fotos antigas, de três anos antes: esperando o almoço no sofá, a mãe Isabel enxugando as mãos no avental… fotos em preto e branco coladas com fita branca em folhas enormes de capa lisa… ela mesma, de malha e cabelo preso, abraçada a Luize Mazari, uma garota italiana (melhor amiga) e uma outra menina de sapatilhas desamarradas e nariz vermelho olhando para o lado…
“- Veja estas fotos… este é o Teatro Municipal!” – disse para si com interesse e admiração genuínos nos pequenos recortes desfocados dos bastidores da antiga Companhia de Dança, se lembrando dos tempos de bailarina e das cortinas de feltro gigantescas, baús abertos transbordando roupas de rendas multicoloridas, sala de maquiagem lotada, meninas correndo à frente dos espelhos iluminados por uma profusão de lâmpadas desfocadas, pequenas manchas brancas nos cantos das fotos… coreógrafo afetado com cílios postiços, ela de novo, sorrindo enquanto colocava grampos nos cabelos com o reflexo no espelho duplicando seu sorriso, de suspensórios e calça curta até as canelas finas e desajeitadas. Uma última foto agora, esta tirada pelo namorado, novamente Eva, sorrindo de olhos fechados, perplexa. Nesta mesma, lá estava sua mãe, de costas e de mãos dadas com uma figura humana velada, bem maior em suas dimensões que qualquer habitante da terra, caminhando de perfil com um sorriso plácido no rosto. Além das fotos, encontrou também um embrulho amarrado com um fino barbante verde. Cortou – o com os dentes e percebeu que existia uma série de pedras coloridas e lapidadas com cuidado, enroladas num papel amarelado pelo tempo escrito à mão com letras hippies:

Âmbar: para os que estão desesperados e precisam de algum tipo de alívio;
Crisopraso: para arrogância e o egoísmo;
Hematita: para os sentimentos de não conseguir se defender;
Jaspe Sangüíneo: para os que exigem afeição inquestionável;
Malaquita: para os que lutam em demasia para controlar sua realidade;
Opala: para agitação reprimida devido à tentativa de resistir a qualquer forma de estimulação;
Dolomita: para a falta de desenvoltura ou medo de fracassar;
Rodocrocita: para exaustão devido à frustração.

Eva admirou a dançarina toda vestida de rosa e com cabelos negros lisos esvoaçantes desenhada na tampa da caixa que segurava apoiada nos joelhos. No canto havia os dizeres: “Pertence a Isabel O´Neall”. No verso do papel que envolvia as pedras, havia um endereço: “Galvani Street – 446 (bata na porta XIX)” e Eva tremeu quando o brilho das pedras refletiu de maneira estranha num espelho aninhado no canto da parede. Ao seu lado, havia um arranjo de flores murchas e empoeiradas em um vaso repleto de pequenas rachaduras, e ela percebeu pela primeira vez que naquele vaso também podia-se ler o número XIX em algarismos romanos. Aterrorizada, procurou por uma lanterna, desajeitada no meio da luz fraca e quando a encontrou, uma sensação doentia se ergueu a seu redor: todos os quadros do sótão possuíam uma assinatura: XIX.

Rodrigo Monzani

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