-por Rodrigo Monzani
Após reler o significado de cada pedra, ela reconheceu a letra da mãe Isabel desaparecida há três anos (era a mesma letra de seus dois cartões de aniversário e dos versos das fotos de seu álbum de infância) e guardou a caixa embaixo da cama, dentro de um berço de boneca após descer meticulosamente devagar para seu quarto. Ela conhecia aquele endereço, mas não a porta XIX: era o de um prédio velho e grande, mas onde apenas funcionava a loja do Sr. Jacques, um cigano com nome francês, de pele áspera, alto, magro, muito gentil e que tinha de tudo em seu pequeno e estranho estabelecimento que cheirava a cravo e cânfora: caldeiras, panelas, parafusos, utensílios, chaves, pregos, ferramentas, selas, cintos e outros objetos de couro. A loja mais parecia uma sucursal do inferno, com diversas pinturas ciganas em mapas fora de escala, incensos paradisíacos, pedras opacas, coloridas e estatuetas de cavalos feitas em madeira.
Eva, mãos nos joelhos, ofegava de tanto correr da chuva em frente ao prédio, os cabelos molhados e os olhos ardendo com as gotas de suor. A Galvani Street com suas possas lamacentas e janelas altas e escuras estava totalmente inóspita e sombria e as nuvens pesadas e cinzentas anunciavam outra queda d´água a qualquer momento. No canto mais claro do beco, o vento balançava um telefone pendurado pelo fio num movimento constante enquanto Eva se esgueirava para perto da porta principal. Estava trancada, mas ela percebeu que havia alguém ali dentro. Talvez o cigano Jacques tivesse contratado um segurança para o prédio à noite, ou talvez aquela sombra fosse a do próprio Jacques, a se julgar pela maneira vacilante e lenta de se movimentar no pequeno saguão da recepção. Além do vulto, aparentemente não havia mais ninguém lá dentro, as luzes dos andares estavam apagadas e o silêncio era sepulcral, solene.
Quando os olhos se acostumaram novamente à escuridão, Eva estava sentada com as costas no contâiner, sentindo uma forte dor de cabeça enquanto mosquitos lhe cobriam os braços, mas ela não se incomodou. Sua atenção se voltara à metade de uma garrafa de whisky, próxima a seus pés. Ela a pegou, usando a ponta dentada do gargalo quebrado para escrever seu nome num dos pés do contâiner com letras pequenas e finas, riscos brancos tremidos contrastando com o negro da noite: Eva O´Neall. Olhar para seu nome lhe fez lembrar de seu pai no hospital, de sua expressão na última vez que o vira deitado na maca com suas ataduras e seu sorriso apático nos lábios ressecados, tremidos como aquelas letras, morto como aquelas letras.
Um cachorro latia distante atrás do muro e num surto de coragem, ela se levantou e correu para a entrada do prédio. Estava muito escuro e Eva apenas enxergou os degraus passando debaixo de seus pés, depois, só as trevas silenciosas e sombrias, frias com o vento do saguão. Chegou até o corredor e reconheceu suas paredes descascadas e opressoras. A lua lançava um tom prateado em torno do prédio e em suas janelas, iluminando fracamente a madeira velha do chão e o verde das portas com os números em algarismos romanos azuis. Pela primeira vez, Eva percebeu que a porta XIX era maior que as demais, seu batente estiloso ofuscava ao redor e, por debaixo dela, uma luz branca brotava friamente junto ao chão, banhando o corredor de uma maneira estranha. Notara também que ficava exatamente à frente da loja do cigano ferreiro.
“- Acalme-se… vejo que trouxe nossas pedras. A Companhia de Dança a espera, bailarina.” – e Eva entrou naquela sala que dava para os bastidores do Teatro Municipal, três anos antes. Sua mãe a esperava com o estojo de maquiagem no colo, ao lado de Edson Van Baxter que lhe tirou uma foto enquanto Eva sorria de olhos fechados, perplexa, a mesma foto que encontrara em seu sótão na noite anterior, sob a luz da lâmpada nua que ardia discretamente dentro da escuridão.
Comente!