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Eva – parte II de II

Eva – parte II de II

-por Rodrigo Monzani

Asas sangrentas e desespero de algum animal. Foi isso que Eva viu quando desviou os pensamentos para tentar compreender seu medo, entremeando seus olhos nele, submerso e negro como um corvo mergulhado numa noite fugaz. Era uma sensação tênue e irremediavelmente árida e nenhum estímulo imaginativo ou concreto pôde torná-la grandiosa.
Após reler o significado de cada pedra, ela reconheceu a letra da mãe Isabel desaparecida há três anos (era a mesma letra de seus dois cartões de aniversário e dos versos das fotos de seu álbum de infância) e guardou a caixa embaixo da cama, dentro de um berço de boneca após descer meticulosamente devagar para seu quarto. Ela conhecia aquele endereço, mas não a porta XIX: era o de um prédio velho e grande, mas onde apenas funcionava a loja do Sr. Jacques, um cigano com nome francês, de pele áspera, alto, magro, muito gentil e que tinha de tudo em seu pequeno e estranho estabelecimento que cheirava a cravo e cânfora: caldeiras, panelas, parafusos, utensílios, chaves, pregos, ferramentas, selas, cintos e outros objetos de couro. A loja mais parecia uma sucursal do inferno, com diversas pinturas ciganas em mapas fora de escala, incensos paradisíacos, pedras opacas, coloridas e estatuetas de cavalos feitas em madeira.
No fim da tarde seguinte, enquanto saía com as pedras encontradas aninhadas no bolso de sua calça larga de pano, a caminho do prédio, Eva pensou em seus tempos de bailarina, quando sua única preocupação era juntar alguns centavos para comprar os exemplares do Caderno Semanal de Dança “Spleen et Idéal”. Lembrou – se dos namorados, particularmente de Edson Van Baxter, um garoto negro que sempre a acompanhava nas expedições à padaria e que a ajudara na falsificação da identidade, com sucesso, para poderem assistir pornografia no cinema da extinta rua 15.
Onde estaria Edson, o garoto que gostava de beisebol e de dizer seu nome completo, se referindo a si mesmo com a prepotência de um nobre em decadência? Onde estaria sua mãe Isabel? Onde estaria a linha que separou a vida de seus negros dias atuais?
Os dias de Eva se amontoavam como gelo sobre uma carcaça de algum animal abatido sem dó, esquecido numa caverna obscura e congelante esperando a mão do destino, de luva preta, para libertá – lo; e Eva se sentia desequilibrada quando olhava por entre o gelo e percebia que aquele animal (encolhido, disforme e morto) tinha a sua face.
Eva, mãos nos joelhos, ofegava de tanto correr da chuva em frente ao prédio, os cabelos molhados e os olhos ardendo com as gotas de suor. A Galvani Street com suas possas lamacentas e janelas altas e escuras estava totalmente inóspita e sombria e as nuvens pesadas e cinzentas anunciavam outra queda d´água a qualquer momento. No canto mais claro do beco, o vento balançava um telefone pendurado pelo fio num movimento constante enquanto Eva se esgueirava para perto da porta principal. Estava trancada, mas ela percebeu que havia alguém ali dentro. Talvez o cigano Jacques tivesse contratado um segurança para o prédio à noite, ou talvez aquela sombra fosse a do próprio Jacques, a se julgar pela maneira vacilante e lenta de se movimentar no pequeno saguão da recepção. Além do vulto, aparentemente não havia mais ninguém lá dentro, as luzes dos andares estavam apagadas e o silêncio era sepulcral, solene.
Eva, tentando pensar no que fazer para conseguir entrar, lamentou não ter levado seu par de luvas e nem sua capa de chuva. Agachada no canto da porta, abaixo de um enorme cadeado metálico e de três correntes, apertava os olhos para ver por entre os frisos do vidro quando a sombra, que a passos lentos ia de um lado para o outro, distante e desfocada, parou. Eva sentiu secura na garganta quando o vulto começou, de repente, a se movimentar de maneira desajeitada em sua direção, se tornando cada vez maior e mais visível através do vidro molhado, como uma mancha escura e deformada. Ela caiu sentada para trás, se levantando freneticamente com as mãos sujas de terra úmida e folhas mortas que se acumulavam nos primeiros degraus da entrada. Correu até o fim do beco e se escondeu atrás de um contâiner enorme, cheio de lixo e insetos pequenos, repugnantes. O cheiro era horrível e pungente, haviam garrafas de cerveja quebradas e vários pneus velhos com aspecto esverdeado pelos musgos que afloaravam com a umidade excessiva. O sol já havia se posto e o céu continuava carregado, sem estrelas, filtrando a luz da lua através das nuvens.
Ela tentou não fazer barulho, apurando os ouvidos através dos tilintares imprecisos de algum líquido que respingava do contâiner, diretos no chão ao seu lado. Os passos dentro do prédio, rastejantes, pesados, se tornavam cada vez mais audíveis e precisos, os mesmos passos que ouvira no quintal de sua casa em algumas noites, deduzindo que aqueles sons seriam apenas um pesadelo. Ouvia também, bem próximo de sua cabeça, os ruídos dos insetos que percorriam as paredes do contâiner, invisíveis. Começou a sentir coceira nos braços e nas pernas e quando tentou espalmar os mosquitos ao redor dos joelhos, a porta do prédio se abriu num coice violento, de uma só vez, cuspindo poeira e barulho para dentro do beco numa explosão assustadora. Eva tremeu, empertigando a cabeça pelo vão entre o contâiner e a parede. Não havia ninguém lá, só as portas pesadas e abertas, rangendo até a abertura máxima. O cadeado fora lançado até sua frente, estourado ao meio e uma das correntes que segurava a porta ia e vinha, pendurada no alto da escada de incêndio.
Eva ficou sentada ali por um longo tempo, sem saber o que fazer. Talvez esperasse alguém aparecer, o senhor Jacques, a polícia, um segurança, mas isso não aconteceu. O barulho do vento que parecia sair de dentro do saguão principal era anormal, não tinha nada de trivial, mas sim uma frieza que aumentava a podridão que a atingia tão forte que ela pensou sentir seu gosto direto em sua boca. Levantou com dificuldade, apoiando as mãos no muro e sentindo as pernas tremerem. Ficou em pé até que as luzes de um carro atingiram diretamente seus olhos, da esquina, fazendo pequenas estrelas cintilantes e inconstantes dançarem a sua frente como fogos de artifício.
Quando os olhos se acostumaram novamente à escuridão, Eva estava sentada com as costas no contâiner, sentindo uma forte dor de cabeça enquanto mosquitos lhe cobriam os braços, mas ela não se incomodou. Sua atenção se voltara à metade de uma garrafa de whisky, próxima a seus pés. Ela a pegou, usando a ponta dentada do gargalo quebrado para escrever seu nome num dos pés do contâiner com letras pequenas e finas, riscos brancos tremidos contrastando com o negro da noite: Eva O´Neall. Olhar para seu nome lhe fez lembrar de seu pai no hospital, de sua expressão na última vez que o vira deitado na maca com suas ataduras e seu sorriso apático nos lábios ressecados, tremidos como aquelas letras, morto como aquelas letras.
Um cachorro latia distante atrás do muro e num surto de coragem, ela se levantou e correu para a entrada do prédio. Estava muito escuro e Eva apenas enxergou os degraus passando debaixo de seus pés, depois, só as trevas silenciosas e sombrias, frias com o vento do saguão. Chegou até o corredor e reconheceu suas paredes descascadas e opressoras. A lua lançava um tom prateado em torno do prédio e em suas janelas, iluminando fracamente a madeira velha do chão e o verde das portas com os números em algarismos romanos azuis. Pela primeira vez, Eva percebeu que a porta XIX era maior que as demais, seu batente estiloso ofuscava ao redor e, por debaixo dela, uma luz branca brotava friamente junto ao chão, banhando o corredor de uma maneira estranha. Notara também que ficava exatamente à frente da loja do cigano ferreiro.
Antes de bater, a porta se abriu e uma figura humana velada, bem maior em suas dimensões que qualquer habitante da terra, ergueu – se em seu caminho. A cor da pele da figura era da perfeita brancura da neve. Ela o ameçou com o gargalo quebrado da garrafa que havia pego no beco e tropeçou num cinzeiro de corredor ao andar para trás, espalhando cinzas ao redor e derrubando as pedras de sua mãe que encontrara no sótão; e ela pôde perceber que as pedras, espalhadas no meio das cinzas, brilhavam de uma maneira quimérica.
“- Acalme-se… vejo que trouxe nossas pedras. A Companhia de Dança a espera, bailarina.” – e Eva entrou naquela sala que dava para os bastidores do Teatro Municipal, três anos antes. Sua mãe a esperava com o estojo de maquiagem no colo, ao lado de Edson Van Baxter que lhe tirou uma foto enquanto Eva sorria de olhos fechados, perplexa, a mesma foto que encontrara em seu sótão na noite anterior, sob a luz da lâmpada nua que ardia discretamente dentro da escuridão.

Rodrigo Monzani

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