Simplicíssimo

Fera

Caçadores são uma espécie solitária de seres humanos porque raros são aqueles que podem seguir os caprichos de suas mentes obstinadas. Ao contrário dos lavradores que cultivam seja lá o que for – trabalhos, relacionamentos, pessoas, situações – caçadores estão sempre em busca de algo, de tudo, qualquer coisa. Enquanto os primeiros primam pela constância e sentem-se felizes em conhecer a fundo algo ou alguém, os segundos são prodígios de temeridade e sentem a necessidade constante de novos alvos e novos estímulos. Uns adubam, regam e direcionam todos os esforços para o momento da colheita. Outros são seduzidos em intensidade proporcional ao tamanho do desafio, concentram-se num alvo e o perseguem mesmo que à noite, mesmo que no frio. Frio que fizera naquele dia e persistia durante a noite. Puxa vida, como estava frio e como eu detesto frio! Soprava aquela brisinha horrorosa e enregelante que se infiltra pelas costuras das roupas e não há meia ou luva que a impeça. Redundante dizer que meu humor não estava lá essas coisas e que a cama afigurava-se mais tentadora que nunca, cheia de travesseiros fofos empilhados sobre um edredom branco e perfumado. A perspectiva de colocar o nariz pra fora de casa era ridícula e estaria absolutamente fora de questão, não fosse o fato do telefone ter tocado, horas mais cedo. Desliguei o aparelho sentindo o calor familiar se espalhar pelos membros, qual me preparasse para o salto, para o bote. Meu corpo conhecia bem a excitação que antecedia a caçada, uma droga, um vício. O pulso acelerado, a boca seca. Algo que crescia em meu íntimo, fluía pelas pontas dos dedos e causava ligeiro arrepio de ansiedade no ventre. Um novo desafio! E daquela vez eu sequer a tinha procurado, a presa viera ter à minha porta e oferecera-se insolentemente, provocando meus instintos, atiçando-me a ferocidade. Tivesse um espelho à mão e teria visto o brilho felino que me perpassou os olhos e o leve traço de crueldade que me curvou os lábios, num sorriso predador. Caindo a noite, resisti, pois, ao apelo da cama aconchegante e voltei a atenção para o espelho, donde meus olhos escuros me encaravam, cheios de determinação e ardor. Pós e cremes deram as cores da pintura quase ritualística, vesti-me qual guerreira que se dirige à batalha mortal e arrematei com essência discreta. A figura no espelho sorriu satisfeita e algo zombeteira, antecipando a vitória e ansiando pela investida. Saí para o frio, era hora. O bom caçador sabe fazer-se tão atraente quanto letal para a presa. Sorrisos e olhares prometem na medida e intensidade certas, palavras soam estudadamente espontâneas e encantadoras, meneios de mãos e cabelos destilam eflúvios embriagantes. A reação é certa e deliciosa. O olhar vidrado da presa revela que está prestes a entregar-se aos meus dentes de bom grado, não importando que por um segundo de êxtase eu possa estraçalhar-lhe as vísceras e banhar-me com seu sangue.  Aproxima-se e toma entre as mãos quentes e macias a minha, numa postura de quem implora, mas não por clemência e sim para que eu consumasse logo o ataque, cessando a agonia do prelúdio.

Livia Santana

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