Eu só vi um cadáver em minha vida. Do corpo borrado nas ferragens do acidente na estrada só lembro da blusa de lã azul. Há alguns dias, no entanto, assisti à morte de um amigo. Não foi o seu corpo morto, mas a sua morte. O corpo é o refugo da vida, o óleo que se estagna nas engrenagens enquanto o fluxo desliza sobre elas. Encarar um cadáver é questão de hábito. Para um agente funerário ele é o que uma massa é para o pizzaiolo, uma alface para o agricultor. Se não percebêssemos o cheiro, as marcas, a cor da pele, a respiração, como distinguiríamos o morto daquele que dorme?
Assistir a morte é acompanhar as angústias, medos, dúvidas, inspirações e emoções da certeza do fim. Ninguém estava com ele, só eu. Ignoro porquê, nunca fomos tão íntimos. Dentre todos os familiares e amigos, por que fui a única que continuou ao lado dele? Foi a morte, negando tudo, que criou os nossos laços de amizade, e não a vida com suas banalidades.
Um dia passando apressada pela rua vi aquele livro. Porque o comprei (nunca leio) não sei, mas o coloquei na bolsa e fui ao hospital. Durante o caminho pensei em dar a ele. Chegando no quarto me envergonhei em ter imaginado dar para alguém naquela situação um livro escrito ao longo de 3 ou 4 milênios atrás, que se confunde com esoterismo, auto-ajuda, ocultismo… Minha razão repudiou meu primeiro pensamento em dar o livro a ele, mas uma parte de mim, meio inconsciente, cruelmente o quis ver sofrer. Somos assim, repletos de maldade. Então, logo que cheguei no quarto deixei a minha bolsa cair. Isso nunca acontece comigo. E pior foi ter, quando pegando a bolsa no chão, deixado o livro cair de dentro dela. Sou uma pessoa extremamente cuidadosa. Ter deixado o livro cair no meio do chão foi algo da parte cruel da minha personalidade (“o inconsciente”). Acho que comprei o livro só para ridicularizar o meu amigo. Era uma forma de puni-lo por estar fazendo com que eu perdesse algumas horas da minha semana indo ao hospital. Coisas que a gente pensa mas prefere fingir que não pensamos.
Ele adorava livros. Assim que o viu, esticou a mão em direção a ele. O entreguei sem uma palavra. Ele olhou com curiosidade, logo com perplexidade. Eu me senti envergonhada. Disse “tchau” novamente e sai. No outro dia ele estava morto… não, assim seria uma daquelas novelas sentimentais. Dois dias depois voltei. Ele estava numa situação deplorável. Sentia muita a falta de alguém. Quando me viu, seu rosto se transformou, parecia ter tomado uma dose de insulina ou qualquer coisa assim. Me abraçou chorando de alegria. Depois de 2 dias alguém que se preocupava com ele estava ali novamente. Esqueci o livro. Decidi que iria vê-lo todos os dias, até que um de nós morresse. Era o mínimo que eu deveria a um ser humano como eu.
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Por Norman Lance, escritor, autor do livro Conexões
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