Simplicíssimo

no dia em que me decidi a andar descalço,

 no dia em que me decidi a andar descalço, os pés abertos sobre nuvens densas de grávitons e fuligem, decidi também que não abriria mais a correspondência. e que além disso, não atendenria o telefone e ficaria surdo para para quando me chamassem. mas como me comoveram neste dia os detalhes do chão! eu descobrira, afinal, naquele instante preciso – o mógno partido em delicadezas rubras – os detalhes em que os fabricantes de sapatos tiveram que pensar por mim. mas agora meus pés estavam nus, e meu corpo ganhava novos contornos, novos movimentos, e toda música que emanava disso se chocava contra a casa morta, ressequido substrato da matéria que outrora me animara o nome. as folhas no chão adquiriam mais luz. seus detalhes se multiplicavam na razão das possibilidades de suas perspectivas. e pedra sobre pedra, os pés ergueram o mundo equanto eu levava no torço curvado o manto de sangue coagulado do cosmo  – pensando nos olhos dela, seus cabelos de arsênico – no dia em que eu me decidi a andar descalço – ela

a vida sussurando em minha pele 
a umidade sempiterna
do adorno de marfim da coroa do infinito –

                                                       ela mesma – agora que não calço nada – quis matar-me de ternura e de tédio e asco. que a televisão diga o contrário: eles tentam calar o som das asas dos pássaros nos filmes para que ninguém imagine a liberdade. mas eu possuo os dedos de seresteiro de um bisavô que não conheci, e delimito a presa enquanto acaricio o vento – eia! esse eu peguei. esse destino se alimenta de ódio. aquele de feijão. este outro se alimenta de letras, frases, tratados inteiros. podemos jogá-lo de volta, não presta – e o pescador atira ao mar o peixe ingrato que deixa no tempo os olhos extáticos de quem nada viu do que se lhe mostrou. então percebi que a resistência do chão era que fazia o chão fazer sentido. eu voltava à terra depois de uma longa temporada em mim mesmo, nos meus, nos outros e nos outros dos meus. eu agora era um corpo, apenas um corpo sobre o mundo exercendo meus limites, cantando a circunscrição do redor. pois os limites são TUDO o que o corpo tem. eles são sua substância, sua estopa. e eles, os limites, como eram claros agora! todos vozes muito íntimas e particulares a dedilhar os ouvidos que eu deliberara serem meus. então eu descobri

então eu descobri que não podia fazer nada com isso. 

estava tudo perdido, enfim. o firmamento, eu o carregara para que? haveria uma razão última para que meus pés tivessem que descobrir a sua vocação terrena? no dia em que eu me decidi a andar descalço, todos os ipês brancos morreram exata e simultaneamente às dezoito horas. a banda não dourou a praça com seus timbres, andorinhas não andorinharam, o carrilhão da missa atrasou seu trinado. e a paz morreu diante das criancinhas, tão branca e leve que por alguns segundos ninguém viu nada – cegos, nos debatíamos como os peixes que saltam para dentro da jangada. e então vomitei como se meus pés beijando a terra  quisessem despojar-me de minha carne. 

no calor da voltagem das carícias, eu me descobria só. 

e me descobria povoado. inóspito, admito, mas ainda assim povoado. pois há uma favela dentro de mim, doutor. e uma favela é um lugar onde as pessoas andam descalças dentro de si mesmas. pois eu estou com eles e não há mais nada que o senhor possa fazer. por isso venho hoje apenas para agradecer-lhe os préstimos e deles me despedir para sempre. obrigado por provares que és inútil, estou feliz. agora posso caminhar descalço com este povo que me habita. é um povo hostil e terno, místico e amadeirado. feito de camisetas encardidas de sangue e bandeiras coloridas. talhado por mãos grossas e experientes no trato com matéria prima selvagem. mas um povo de voz e cabeça baixa. no dia em que me resolvi a andar descalço aprendi a 
olhar pro chão. 
e a dar ao chão o nome casa. 
e a amar ao chão. 

sou dono da língua deste povo, doutor, e é nesta mesma língua dentro de outra língua que voz falo – pois que senão entenderias outra coisa quando digo: o amor é uma ciência especulativa. façam suas apostas, iniciados e iconoclastas! a estátua lúbrica do amor, quem vai decifrá-la? – dois bilhetes por um, só por hoje madame, mademoiselle, vai levar? mas isso te parece triste, imagino. digo com todos os nervos que agora és (SOMOS) livres, e tu te serves do lenço para assoares teu nariz, dissimulando lágrimas de quem não sabe chorar e tem vergonha de aprender. eu tento costurar, é apenas isso o que faço. eu costuro o mundo com palavras e gestos, tento consertar as fendas na minha pele. é certo que para ser um alfaiate falta-me a auréola perdida do poeta que, quando ao atravessar uma rua estreita de sépia deu-se conta de sua condição de mortal. mas tenho agulhas saindo de tudo o que sou, e traço nos dias a linha que valsa minha vida. 

perdido, é certo.
jamais parado.

pois se há fuga, existem os périplos. e cruzamentos e curvas, avenidas. os acidentes são inevitáveis e belos como a chuva. o encontro entre duas agulhas funda a forma do ponto – a colcha se fecha em si mesma e nos esquenta no inverno – e isto é quase tudo o que se tem pra dizer, doutor. 
e é também a coisa mais bela, 
nosso maior problema, 
nossa idéia fixa

que mordendo as mangas da camisa de algodão numa tarde fria juramos jamais abandonar.

               para então depois, talvez cansados um pouco do brinquedo, a esquecermos entre os documentos timbrados e os ácaros famintos – mas agora todas as estrelas me absolvem neste país de flores extemporênas. e as palavras me arrancam do espaço em que digo seu nome. a boca seca. os olhos secos no dia em que eu me decidi a andar descalço. 

Estevão Daminelli

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