O Demônio das Pequenas Coisas – por Rodrigo Monzani
"Na estreita cisterna que chamais ‘Pensamento' os raios do espírito apodrecem como montes de palhas".
Antonin Artaud
Carta aos Reitores das Universidades Européias
Cristina acordara com secura na boca enquanto a chuva fraca da noite anterior continuava a tilintar nas janelas e no telhado. A televisão, com imagem péssima, zumbia uma reportagem sobre antidepressivos e sua influência nos altos índices de suicídio de adolescentes nos últimos anos. A apresentadora, uma loira de cabelo deplorável e decote atrevido, de fama e sotaques restritos àquela região decadente, chamou a atenção de Cris.
"- … o suicídio é um episódio trágico, porém não inesperado em pacientes com depressão. E, quando o tratamento tem início, uma situação de perigo para a vida pode se tornar iminente. É o que os psiquiatras chamam de síndrome da ativação…".
"Geração Prozac" – Cris conseguiu ler na legenda de letras sombrias e etéreas no canto da tela, com a cabeça no travesseiro molhado de suor. As paredes de seu quarto pareciam mais opressoras a cada segundo audível do relógio. Abaixo dos ponteiros finos e barulhentos do cuco havia um exército de bonecas nuas em miniaturas, bibelôs antigos, um aquário que ela considerava lindo e um mar de livros de capa dura empoeirados, a maioria de clássicos da literatura conseguidos nos sebos da cidade que davam ao seu quarto um aspecto austero imutável.
Quando a luz incidia no vidro esverdeado do aquário era refletida em várias faixas finas que formavam uma espécie de caleidoscópio aqui e ali na parede amarelada pelo tempo, servindo para dar a vida e a beleza ao ambiente, tênues, estáticas e inexoráveis, como uma fotografia da mente de Miró.
Cristina considerava intermináveis aquelas madrugadas com sua atmosfera sedativa, inconfundível e quase macabra. Como uma planta venenosa, a imaginação crescia em seu cérebro para todos os lados, fazendo com que os peixes, que pareciam pairar no ar fora do aquário, se tornassem irreais, resultado de um devaneio ou apenas reflexos de uma criatividade que preferiria não ter.
Caminhou como acordou até o ponto de ônibus. Após alguns passos meticulosos, viu um letreiro de neón a sua direita com nomes que, estranhamente, ainda hoje a perseguem:
King Joseph – psiquiatra e médium
Willem Plank – o mundo das tragédias
Madame Julia. – seu futuro em suas mãos
Eugene Updickel – empréstimo sem comprovação de crédito
O letreiro escondia um corredor mal iluminado com piso de madeira manchada, paredes verdes claustrofóbicas e várias portas que indicavam os números das salas em algarismos romanos: reuniões espíritas, pampsiquismo, mediunidade, psiquiatria de segunda, terceira categoria, quiromancia, oniromancia… profissionais da alma nunca sabem quando e onde parar, desdobrando suas hipocrisias como virtudes, uma a uma, (a hipocrisia seria virtude fundamentalmente na capacidade, leviana ou não, de reconhecer onde está o mal e, em sentido mais amplo, de reconhecer seus disfarces como bem, além de extinguí – lo sem tragédias) ao perambularem soturnos pela incapacidade humana de sobreviver à desilusão. Afortunados ou não, dos quais mesmo os mais livres de medos e pudor são muito comicamente toscos para serem perversos, nunca negaram algo de deprimente em sua incursão entre os demais mortais, ao passo que as absolutas crença e certeza em seus valores seriam, no mínimo, intrigantes.
Cristina avançou devagar, mas não entrou, ouvindo atenta a madeira que rangia sob seus pés e os gritos fervorosos vindos das salas, a esquerda e a direita:
"- … inimigos e desafetos? Eu já estive no inferno!!!" – voz rouca, doentia, seguida por um desfile teatral de frases suicidas de Artaud.
"- … eu sou o choro rancoroso de um assassino, a autópsia gélida de um dissecador do sofrimento humano…" – um tom triunfal, de ópera, saído de uma porta com manchetes sensacionalistas de jornais colados na madeira velha sobre uma Barbie estrangulada, pendurada na maçaneta cujas frestas piscavam uma luz azul-marinho hipnotizante horrível. Cris seguiu pela calçada com olhos fixos no chão, esperou pelo ônibus em silêncio tentando não pensar em nada (em vão) e se sentou.
Frases descoladas de sua memória, discretas e confusas, lhe sugeriam pensamentos tão contraditórios quanto perturbadores de forma que ela não conseguia ao menos especular, restando somente se perguntar, pasma, o que estava ocorrendo a sua volta: " … antes de Durkheim, este tipo de atitude nunca fora visto como um ato social altruísta." – foi isso que a Doutora Veiga dissera sobre o suicídio das viúvas indianas que eram queimadas junto aos cadáveres de seus maridos mortos em guerra. Cristina, dor de cabeça terrível, olhos desacostumados aos ângulos mais lúcidos do dia que a atingiam filtrados pela janela do ônibus deserto, ainda se lembrava da aula de sociologia há dois dias. Com o rosto enterrado entre os braços, a garota admirou de olhos cerrados com força o canto monossilábico de algum de seus demônios que parecia se desintegrar na manhã e nos ventos.
Sonhos abstratos ainda espetavam – lhe as retinas, buscando refúgio em algum recanto escuro de seu corpo onde os sons fossem mais calmos que os do amanhecer e aquele canto em sua cabeça, ela percebeu, a reconfortava. "Posso me sentir a pessoa mais triste nesta manhã." – pensou, antes de adormecer sentada, de olhos entreabertos, reclusa no banco do ônibus. Sentia uma paixão longínqua em seus vagos teares de dúvidas, enquanto marionetes de interesse escasso e beleza nula desfilavam diante de seus olhos operados por mãos calejadas e carentes de habilidade e sutileza. O olhar rebuçado de sonhos, cheios de ventanias e labaredas invisíveis, focava e desfocava a silhueta das pessoas nas ruas, falantes, com as cores das luzes sugando seus rostos e depois adormecendo sozinhas, retilíneas, compridas mas sem medida.
Cristina começou a sonhar, aparentemente tranqüila com seu rosto impassível. No sonho, corria sozinha, enegrecida pela noite, amedrontada por entre galhos no chão, árvores espaçadas e trilhas barrentas infestadas de insetos e cacos de vidro. Ouvia a voz da apresentadora de televisão. "Geração Prozac":
"- … o suicídio é um episódio trágico, porém não inesperado em pacientes com depressão. E, quando o tratamento tem início, uma situação de perigo para a vida pode se tornar iminente. É o que os psiquiatras chamam de síndrome da ativação…"
Não sabia do que corria, mas que corria de alguma coisa pesada, que se movia ruidosamente por entre a mata, bufando e gritando sons ininteligíveis. Com os olhos luminosos, fixos no centro de um vazio imenso, avistou um vagão antigo, enferrujado, no qual havia dizeres acima da porta aberta: Síndrome da ativação escrito em letras sombrias, incomodamente ácidas à luz da lua que se esgueirava entre as nuvens.
Cansada, Cristina pulou vagão adentro, imersa na escuridão. Aterrizou. Borboletas negras e violetas, muitas delas, voaram afogueadas, seguindo – se um silêncio duro, fantasmagórico. Passos contidos, galhos se quebrando sufocados na noite. A lua havia se revelado através de uma rachadura podre no teto do vagão quando Cristina olhou ao redor e, atônita, vislumbrou a silhueta de um homem do outro lado, dentro do vagão. O homem, velho e de aparência gélida, lhe levantou os olhos, aveludados e familiares. Na entrada do vagão, a sombra da criatura que a perseguia lhe chegou vagarosamente e então ela acordou gritando.
Percebera que estava com seu vestido domingueiro e olhou para as solas dos pés encardidas e machucadas com a inocência tola e unidimensional de um recém – nascido, algumas lascas de unha ficaram nos degraus que separam seu quarto da rua para a qual se acostumara a olhar enquanto dedicava suas noites aos estudos dos clássicos, das ilusões de Dionísio às metamorfoses de Ovídio, da dialética de Marx à neutralidade de Durkheim.
O ônibus parou ruidoso ao lado do estacionamento da faculdade. O carro de Cristina, um Scout 86 era o único por ali, formando um ângulo agudo com a calçada. Ela abriu a porta e pegou algo no porta – luvas. Jornais velhos das últimas discussões do Centro Acadêmico, sujos de lama, dançavam em espirais descendentes pelo ar como bailarinas negras sobre a cabeça do velho Aníbal, um guarda de trejeitos afetados, olhos inteligentes e sinceridade melancólica. Falava em tom extremamente baixo com requintes de um conformismo gentil, sempre atento aos alunos nas esporádicas vezes que seus olhos se cruzavam ao acaso.
Os olhos dele pareciam suplicar algo quando fitavam Cristina, brilhantes, desolados, cheios de uma tristeza liquefeita e sempre febris, certamente a máscara mortuária de seu espírito deprimente e deprimido. Ele se virou a tempo de vê – la descer com as sandálias nas mãos, um filete de sangue escorrendo do joelho até o pé direito. Embora com apenas 21 anos, Cristina carregava uma característica incomum para uma jovem: sua candura não advinha de espontaneidade, mas sim de uma perícia trêmula e tênue, capaz de decodificar seus medos e abrir – lhe as portas para escapar dos turvos fantasmas que, explícitos, rondavam – lhe os desvãos de sua juventude.
Ela passou indiferente pelo velho com a calma áspera de uma orquídea, os pensamentos gotejando em algum local congelante e obscuro dentro de sua cabeça onde os processos racionais deslizavam sem um objetivo específico, escutando o rádio que ele segurava sobre as pernas, uma verdadeira metralhadora de tragédias diárias:
"A menina saiu do carro/buscava socorro para seu pai ferido no acidente/vinte carros atropelaram-na/seus restos foram encontrados num raio de 45 metros/pesquisadores desenvolveram roupas que mudam de cor/pipocas para microondas/lançarão em breve torradeira transparente/reuniu durante seu governo 600 milhões de dólares para campanha à presidência/não se amedronta com fantasmas mas tem pesadelos em que é seqüestrado/a jovem tinha dezoito anos foi espancada, estuprada e estrangulada com um cadarço de tênis/jogada em uma cova rasa/sonhava ser bailarina".
"- Você não pode entrar aí, o instituto está fecha…" – o velho Aníbal nunca terminara a frase com a chave de fenda enterrada no pescoço. O mostrador digital de seu rádio mostrava em números vermelhos demoníacos: Eram 6:08 da manhã quando Cris subiu as escadas até a biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Eram 7:26 quando as primeiras pessoas andavam pelo pátio ao lado do estacionamento, nadavam na piscina descoberta da faculdade de educação física bem a frente, do outro lado dos portões que encantavam o espírito com uma indefinível volúpia ao barulho de suas correntes, com seu rugir súbito e moroso cintilando contra a atmosfera na qual enterrava suas grades bem feitas e dentadas.
Os corredores beges com cartazes de campanhas beneficentes pareciam soprar um ar gélido sobre os ombros dela enquanto arrastava o corpo do guarda, deixando uma trilha vermelha no linóleo. Sala de reuniões, secretaria de graduação… almoxarifado. Entrou, pegou o rifle e subiu a escada.
Com cautela escrupulosa, ela abriu a janela da biblioteca, enorme, fazendo as cortinas de feltro dançarem freneticamente com o vento sobre os olhos desfocados do corpo inerte de Aníbal. O céu estava carregado e as nuvens derramavam um tom estranho de cinza sobre a grama, refletido no telhado do refeitório no fim do campus.
Cristina carregou o rifle, mira automática, treze caixas de munição aninhadas sobre a barriga do cadáver do guarda ao seu lado. Ajoelhou – se junto ao batente envernizado antes da primeira série ser descarregada. A água da piscina ganhou tons de vermelho vivo. A garoa fina não servira para conter os gritos e a correria histérica. Um cachorro, enorme mas distante, latia furioso preso ao portão.
"- Chuva… isso é um bom presságio." – ela disse com rosto sério, recarregando o rifle. Os corpos caíam, se amontoando na escada principal, no estacionamento, no ponto de ônibus, flutuando na piscina.
"- Vamos… as flores precisam crescer no jardim e Dionísio quer comê – las." – cantarolou para si mesma com a voz fina, cabelos esvoaçantes, olhos resolutos e movimentos centrados sobre outra caixa de munição enquanto a chuva aumentava energeticamente sobre outra rajada de tiros.
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